Com os Estados Unidos enfrentando um cenário de endividamento crescente, inflação persistente e políticas fiscais cada vez mais imprevisíveis, a tese de investimento em ativos norte-americanos começa a dar sinais de exaustão, e os investidores globais buscam diversificar.
Para a gestora Global Evolution, agora é a vez dos mercados em desenvolvimento, em especial dos mercados de fronteira, ou economias “submergentes”. Esses mercados são mais arriscados que os mercados emergentes, como o Brasil e a Índia, sendo exemplos países como Egito, Nigéria, Quênia e Argentina.
Posições nesses países renderam ao fundo Global Evolution Fund, especializado em títulos soberanos em dólar e moeda local, um retorno líquido de 14,8% em dólar nos últimos 12 meses.
As recentes políticas tarifárias de Trump, que devem levar a uma desaceleração das grandes economias mundiais, não estão mirando esse tipo de mercado, que, na verdade, tem se beneficiado da desvalorização do dólar.
“As políticas do Trump ajudam muito esses países porque enfraquecem o dólar. Quanto mais malucas, melhor para nós”, afirma Stephen Bailey-Smith, gestor estrategista da Global Evolution, em entrevista ao NeoFeed. “Estamos no começo de uma grande rotação global nos portfólios. A saída dos ativos dos Estados Unidos e a busca por retorno em países que realmente vão crescer nos próximos anos são um movimento que já começou e ainda vai acelerar.”
Quem ajudou bastante neste resultado do fundo foi a Argentina, país com o qual a gestora afirma ter conseguido 90% de retorno em moeda local e que está confiante em seguir tendo bons retornos com a transformação estrutural do país sob o governo Javier Milei, citando o ajuste fiscal, a nova política monetária e o potencial da indústria de óleo e gás.
“Acompanho muitas histórias de virada, mas essa é, de fato, excepcional”, afirma Bailey-Smith. “Nenhum outro país que acompanhamos saiu de um lugar tão ruim, com 300% de inflação, para um plano tão ambicioso de reestruturação, que está dando certo.”
Fundada em 2007, a Global Evolution é uma gestora especializada em dívida soberana e corporativa de países emergentes e de fronteira, com escritórios em Kolding (Dinamarca), Londres, Nova York e Singapura, e US$ 16 bilhões sob gestão. Desde 2020, faz parte do grupo Generali, uma das maiores seguradoras do mundo, com mais de 600 bilhões de libras esterlinas em ativos.
Acompanhe os principais trechos da entrevista:
Trump está impondo tarifas a vários países, e isso pode reduzir o crescimento mundial. As pessoas estão tirando dinheiro dos EUA e procurando outras oportunidades. Isso abre espaço para os mercados de fronteira ou aumenta a aversão ao risco?
Acho que o ciclo de crescimento forte nos EUA já foi longe demais. Eles vêm operando com déficits gigantes, o que sustentou esse crescimento artificial do mercado. Agora, a conta está chegando. O serviço da dívida passou de 9% da receita em 2000 para 18,5% no ano passado e pode chegar a 25% ou 30% se continuarem nessa toada. Trump também deixou claro que quer reindustrializar os EUA e reduzir o déficit em conta corrente. Para isso, ele precisa de um dólar mais fraco – e já tem sinalizado isso.
Quando isso acontece, os ativos em dólar perdem atratividade. A última vez que vimos algo assim foi entre 2002 e 2008, antes da crise financeira. Acho que estamos voltando a um ambiente parecido, em que vale a pena manter ativos em outras moedas. Já vemos fluxos voltando para emergentes, especialmente em ações. E os mercados de fronteira são os segundos a receber esses fluxos, isso vai acontecer.
Estamos então entrando em um novo ciclo de investimentos global?
Certamente. A forma arbitrária como Trump governa dificulta o investimento direto nos EUA. As regras mudam toda hora. O ataque à credibilidade do Fed também é uma loucura. A arquitetura financeira global está sendo chacoalhada.
Acredito que estamos no início de uma grande rotação: saindo dos ativos americanos e indo para ativos de crescimento. Não acho que muitas empresas voltarão a produzir nos EUA por causa desse protecionismo. A incerteza regulatória é enorme. Estamos no começo de uma rotação estrutural que pode durar anos. O dólar vai continuar fraco, e os fluxos para emergentes e fronteiras devem crescer.
Essas tarifas também afetam menos os mercados de fronteira?
A maioria dos países de fronteira não é grande produtora industrial, que são o alvo de tarifas dos EUA. Bangladesh e Paquistão têm bastante têxtil, mas isso é pequeno. A guerra comercial é sobre China, Índia e um pouco a Europa. Então, esses países nem estão na mira do Trump.
Você vê mais crescimento nos mercados de fronteira, justamente por estarem menos expostos às tarifas?
Sim. O crescimento exagerado dos países desenvolvidos veio da impressão de dinheiro e de déficits enormes. Agora estão pagando o preço com inflação. Já os mercados emergentes e de fronteira não puderam fazer isso – ninguém empresta para eles se começam a imprimir dinheiro. Então, têm menos dívida e mais espaço para crescer. Se você olhar as projeções do FMI, OCDE e grandes bancos, todos esperam crescimento mais forte nos emergentes e nos mercados de fronteira.
Então enquanto o mercado está obcecado com os EUA e suas ações, você diz que é possível ignorar isso?
Sim. Durmo tranquilo quando o Trump fala bobagens, não afeta esses mercados. Procuramos histórias idiossincráticas que podemos combinar num portfólio que quase não depende do que o Fed ou Trump faz. Analisamos o ciclo de cada país, a política fiscal, os preços de commodities. Tudo isso é mais compreensível do que tentar adivinhar o impacto de um tuíte (postagem em rede social).
"Procuramos histórias idiossincráticas que podemos combinar num portfólio que quase não depende do que o Fed ou Trump faz"
E os retornos em mercados de fronteira tem sido bons? Tem oportunidades específicas desse mercado?
Após o Covid, muitos desses países foram lentos para ajustar as políticas. Não elevaram juros de forma significativa, não deixaram as moedas se desvalorizarem livremente e, em muitos casos, tentaram imprimir dinheiro, como as economias desenvolvidas fizeram. Isso criou grandes distorções.
Egito, Quênia, Gana, Nigéria e Argentina — todos controlaram artificialmente suas moedas e criaram mercados paralelos com grandes diferenciais cambiais. Isso gerou enorme disfunção nos mercados de câmbio. Mas, no último ano, vários deles permitiram que as moedas se ajustassem, elevaram juros significativamente e agora estamos do outro lado desse ciclo. É o tipo de ciclo clássico que vemos em mercados de fronteira: controle artificial, crise cambial, resgate com o FMI, ajuste fiscal, estabilização. Estamos nessa parte final.
Por exemplo, nossa estratégia blended, que combina dívida em moeda local e forte — e representa nosso fundo dominante com cerca de US$ 2 bilhões — subiu entre 18% e 19% nos últimos 12 meses. Em julho, provavelmente vai bater 20%, porque foi um mês muito bom.
Qual foi o motor desse desempenho?
Ambas as partes — moeda forte e moeda local — performaram bem. Tivemos um período em que a dívida de alto rendimento em dólar ficou muito barata entre 2022 e 2023, e voltou a se valorizar em 2024. Argentina, por exemplo, foi nossa posição de melhor desempenho no ano passado, com retorno de mais de 90%.
"Milei se apresentou como alguém heterodoxo, mas, na prática, as políticas e a equipe que ele escolheu são extremamente ortodoxas"
E vocês continuam alocados na Argentina?
Sim, mas estamos migrando mais para dívida em moeda local lá, porque achamos que boa parte do ganho em dólar já foi capturado. Também tivemos excelentes resultados com Equador, Nigéria, Gana, Egito e Quênia na parte dolarizada. E, mesma coisa, depois migramos para moeda local.
Argentina foi seu melhor investimento em 2024. O que aconteceu por lá?
Milei se apresentou como alguém heterodoxo, mas, na prática, as políticas e a equipe que ele escolheu são extremamente ortodoxas — muito parecidas com o time do Macri. Alguns nomes são, inclusive, os mesmos.
No fim das contas, ele acredita em decisões econômicas guiadas pelo mercado. Está tentando eliminar camadas e mais camadas de regulamentações e substituí-las por algo mais dinâmico, mais orientado ao mercado.
E isso tem dado certo?
Exatamente. Há dois eixos na economia política: um é como criar riqueza, o outro é como redistribuí-la. Se não se cria riqueza, não há o que redistribuir. E se só se cria riqueza sem redistribuir, a sociedade se torna desigual. Argentina ficou obcecada com a redistribuição, mas sem gerar riqueza. O que Milei propõe é voltar a gerar produtividade — e, para isso, é preciso tirar o Estado de cada decisão e gerar confiança na economia.
E o primeiro passo para isso é criar confiança na moeda, certo?
Sim. Parar de imprimir dinheiro e de financiar o Estado via Banco Central. A Argentina viveu décadas em que o governo tomava dinheiro do Banco Central — isso destruiu completamente a moeda. É um desastre em qualquer lugar, inclusive nos EUA, se pensarmos no quantitative easing.
Eles estão revertendo 30 anos de hiperregulação. Hoje, tudo tem uma regra, um obstáculo. Se você não conhece as pessoas certas, não consegue avançar. Eles querem mudar isso. Criar um ambiente em que, se você trabalha duro e é produtivo, consegue progredir. A inflação já caiu de quase 300% para 42%. Isso foi possível porque o câmbio se estabilizou. O mercado paralelo (blue chip) tem estado estável o suficiente para que o governo pudesse remover boa parte dos controles de capital.
Um grande exemplo de como conseguiram confiança foi que em maio emitiram um título inédito de 5 anos na moeda local e foram bem (antes o mais longo era de 2 anos). O mercado comprou, está acreditando. Havia a percepção de que a Argentina estava excluída dos mercados. Mas isso não é verdade. Na minha visão, isso mostra que os investidores estão dispostos a dar o benefício da dúvida de que eles vão entregar essa grande mudança estrutural na economia.
Mas para isso precisam vencer a próxima eleição…
Exatamente. O problema de Macri é que, talvez, ele tivesse entregue o mesmo resultado, mas não teve tempo. Entre Macri e Milei, tudo piorou tanto que agora a população está mais disposta a dar um voto de confiança.
A dúvida do mercado é se eles conseguirão, politicamente, se manter no poder. Por isso, há um certo nervosismo em relação às eleições de meio de mandato agora em outubro e às presidenciais daqui a dois anos. Curiosamente, o título tem uma cláusula que permite ao investidor exercer uma put option, ou seja, vender o papel de volta ao governo justamente antes da próxima eleição. Enfim, deu certo. Emitiram a 29,5% ao ano. O título de um ano hoje está em torno de 40%.
A Argentina foi um dos países da América do Sul que decretaram calote formal. Muitos dizem que isso deixa uma cicatriz difícil de curar, que é difícil reconquistar a confiança dos investidores. Mas você acredita que o governo Milei está conseguindo reconquistar essa confiança? Esse título é um exemplo?
Exatamente. Se você acompanha histórias de virada, como eu faço, essa se destaca como excepcional. Nenhum outro país que eu acompanho está fazendo um ajuste fiscal tão duro, nem vem de um lugar tão ruim, com 300% de inflação. E a qualidade da equipe econômica é muito boa. Além disso, eles assumiram o poder num momento bastante propício, com os campos de petróleo e gás começando a operar. Essa mudança na matriz energética melhora estruturalmente a economia. Então há vários fatores se somando: melhora no balanço de pagamentos, melhora fiscal e uma política econômica bem mais coerente. A Argentina pode realmente florescer, desde que mantenha estabilidade política.
A Argentina é hoje uma posição relevante no fundo de vocês?
No nosso fundo blended, temos uma alocação máxima de 5% por país. Gerimos o risco de forma bastante conservadora. Argentina hoje representa 4,5% do fundo. E essas alocações são baseadas em retorno esperado para os próximos 6 a 12 meses. Temos outros países próximos desse limite também, como Egito, Nigéria, Quênia, Zâmbia, Uzbequistão, Quirguistão e Cazaquistão. Vamos rotacionando conforme os trades se realizam, e há muitas excelentes oportunidades no mercado de fronteira.