Tudo ia muito bem. Há dois anos, Gabriel abandonou o trabalho de 16 anos em uma grande empresa para finalmente empreender no setor de tecnologia. Sonho antigo — o futuro soava promissor. Logo, porém, os problemas financeiros surgiram.
Gabriel se desesperou e se deixou levar pelas promessas das casas de apostas online — o jogo poderia ser um investimento de retorno rápido. Fez até curso com “influenciadores” para aprender a circular por aquele universo, até então desconhecido.
Tudo então começou a dar muito errado. “Eu não tinha autocontrole”, conta ele, em conversa com o NeoFeed.
O vício de Gabriel é em cassinos e apostas esportivas, as "bets". Os primeiros acenam com a promessa de ganhos rápidos. As segundas, com a possibilidade de ganhos maiores, com entradas menores.
Com as dívidas em torno dos R$ 100 mil, em uma única jogada, chegou a ganhar R$ 50 mil. Em certa ocasião, Gabriel movimentou em apenas três meses R$ 1 milhão.
Quando ganhava, ele era tomado por uma sensação deliciosa de poder, o que o levava a jogar mais.
Quando perdia, tinha certeza de que, da próxima vez, ganharia. O vício se instalara, enquanto as dívidas avolumavam.
Sem ter de onde tirar mais e mais dinheiro, Gabriel fez empréstimos, estourou os cartões de crédito, negociou com agiotas... apostou até as economias dos sogros.
Mentia para a mulher, o filho, hoje, com 5 anos, os parentes e amigos. Jogava escondido no banheiro, de madrugada, enquanto todos dormiam.
A esposa não aguentou e pediu a separação, depois de dez anos juntos.
Solidão
“A gente tem muita vergonha e vai se fechando”, conta. Acuado, ele tentou se matar. Foi em busca de ajuda e tudo parecia sob relativo controle até cerca de 20 dias atrás. Gabriel recaiu.
Com base em seu histórico de apostas, os algoritmos de uma casa de apostas lhe ofereceram um bônus de R$ 1,25 mil. Para liberar o dinheiro, ele teria de pagar R$ 4 mil. Pagou. E perdeu.
Hoje, aos 34 anos, precisa da ajuda dos pais para as contas do mês. Justo ele, que começou a trabalhar aos 14 anos, para não depender financeiramente de ninguém. A humilhação dói.
Sempre muito ligado em futebol, flamenguista, perdeu o interesse pelo esporte. “Uma das maiores empresas de apostas esportivas do Brasil é patrocinadora do meu time”, lamenta.
Mais jovens e numerosos
Gabriel ilustra à perfeição um tipo de paciente cada vez mais comum nos principais centros de tratamento da dependência em jogo no Brasil. Os especialistas estão assustados. Raras as vezes acompanharam a mudança de perfil de uma doença psiquiátrica em ritmo tão acelerado.
Os dependentes de apostas online, especialmente das bets, são cada vez mais numerosos. E jovens.
Por seu pioneirismo e relevância, o Programa Ambulatorial do Jogo, do Instituto de Psiquiatria, do Hospital das Clínicas de São Paulo (PRO-AMJO) funciona como um recorte da realidade brasileira.
Há seis anos, o serviço recebia cerca de 80 novos pacientes por ano, informa o psiquiatra Hermano Tavares, coordenador do projeto, ao NeoFeed.
Em 2023, foram 160. Deles, 108 queriam se livrar da compulsão por bets.
No PRO-AMJO, desde 2018, a idade média dos dependentes reduziu uma década, chegando, hoje, a 35 anos.
Mas há jovens de 18, 20, 25.... Conforme o NeoFeed apurou, não é raro encontrar adolescentes nos grupos de apoio, como o Jogadores Anônimos e o SOS Jogador.
Uma pesquisa realizada pelo Datafolha, divulgada no início do ano, mostra: 15% das 2.004 pessoas entrevistadas, em todo o País, com mais de 16 anos, apostavam ou já haviam apostado em bets.
Desse total, 30% tinham, no máximo, 24 anos. No Brasil, o jogo é uma das principais causas de comportamento abusivo, ao lado do álcool e da nicotina, .
Ao alcance da mão
Uma combinação de fatores explica a dependência dos mais jovens. O primeiro é também o mais óbvio. Quando, em 2018, as apostas foram liberadas no Brasil, sem, no entanto, regras claras de atuação e fiscalização, as empresas de bet tomaram conta da televisão, dos campos de futebol e, sobretudo, da internet.
O marketing é agressivo. Os sites representam 68% dos patrocínios masters dos clubes de futebol do Campeonato Brasileiro das séries A, B e C — os bancos ocupam o segundo lugar no ranking dos principais anunciantes, com apenas 15%, revela levantamento do início do ano, realizado pelo portal GE, a plataforma de notícias de esporte do Grupo Globo.
Mas foi no espaço digital, com os tais “influenciadores”, que as empresas de bet escalaram. Tudo facilitado pelos smartphones e pelo PIX.
O jogo está ali, a um toque de distância. Dá para apostar a caminho do trabalho, da faculdade ou da escola, na fila da balada, antes de dormir e depois de acordar. É tudo tão rápido, fácil e simples quanto pedir um lanche pelo aplicativo de delivery.
Enquanto houver dinheiro, não há fundo do poço
O vício em jogo é um vício solitário. “Diferente da dependência química ou do alcoolismo, a ludopatia não tem manifestação física evidente. Não dilata as pupilas, não tem cheiro, não emagrece, não causa feridas”, compara o psicólogo Rafael Ávila, coordenador do grupo SOS Jogador, em entrevista ao NeoFeed. “Você pode viver com um dependente durante anos, sem perceber.”
O especialista levanta outro ponto importante: "Enquanto, o jogador compulsivo tiver dinheiro, não existe fundo de poço”.
Em dezembro de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a lei que regulamenta o mercado de bets.
A tributação de empresas e apostadores deve render R$ 10 bilhões aos cofres públicos. Dos quais, 64% vão para os ministérios do Esporte e do Turismo, enquanto a pasta da Saúde fica com apenas 1%.
Para atuar em território brasileiro, as plataformas têm de pagar R$ 30 milhões e devem ter sede e administração aqui. Hoje, a maioria está sediada em paraísos fiscais.
Nos últimos cinco anos, as empresas fizeram muito dinheiro, operando sem fiscalização. Relatório da XP avalia o mercado brasileiro entre R$ 100 bilhões e R$ 120 bilhões.
O psiquiatra Tavares define a lei de regulamentação das apostas, como “louvável, porém incompleta”. “Há um viés quase exclusivo para controle da evasão fiscal e prevenção da lavagem de dinheiro”, diz.
E ele completa: “O conteúdo sobre os aspectos de saúde sob o tópico ‘jogo responsável’ é vago e incompleto. Será necessário uma avaliação cuidadosa do impacto que o aumento do acesso ao jogo terá no SUS, mas já se pode adiantar que a parcela ínfima dos impostos recolhidos destinada à saúde, não será suficiente para cobrir o aumento da demanda por tratamento e prevenção do transtorno do jogo”.