Não se via uma investida tão virulenta contra o patrimônio cultural de uma nação desde a Segunda Guerra Mundial. Para Vladimir Putin, a Ucrânia não tem identidade própria — é apenas “uma parte inalienável de nossa própria história, cultura e espaço espiritual”, disse ele, em pronunciamento aos russos, três dias antes da invasão de 24 de fevereiro de 2022.
Há dois anos e sete meses, monumentos, museus, teatros, bibliotecas, igrejas, templos e edifícios de interesse arquitetônico são deliberadamente destruídos. Coleções são expropriadas e enviadas para a Rússia. Soldados das forças de Moscou pilham peças de arte e as vendem no mercado clandestino. O custo dos ataques contra os bens culturais da Ucrânia está, até o momento, em Є 3,2 bilhões, em cálculo feito pela Unesco em parceria com o Banco Mundial.
A Organização das Nações Unidas já condenou a “campanha de genocídio cultural para destruir a identidade da Ucrânia como país", como definem alguns analistas. “Sejamos claros: o povo ucraniano tem direito à sua identidade. Ninguém pode violar esse direito”, defende a ONU.
Graças a uma rede de solidariedade formada por diretores de museus, curadores e acadêmicos, espalhados por toda a Europa, uma parte da herança cultural ucraniana está a salvo. Em uma operação deflagrada às pressas e feita às escondidas, enquanto cidades e vilas eram bombardeadas, eles conseguiram tirar algumas obras de arte do país — e levá-las para longe da sanha de Putin.
E, assim, depois de passar por Madri, Colônia, Bruxelas e Viena, a exposição In the Eye of the Storm: Modernism in Ukraine, 1900–1930s está hoje na Royal Academy of Arts, em Londres, onde fica até 13 de outubro.
De pinturas a óleo e esboços a colagens e projetos de cenários para o teatro, são 65 trabalhos de artistas já consagrados, como Kazymyr Malevych, Sonia Delaunay, Alexandra Exter e El Lissitzky, bem como de figuras menos conhecidas, como Oleksandr Bohomazov e Mykhailo Boichuk — “cada um dos quais deixou uma marca indelével na arte e na cultura do país”, lê-se no texto de apresentação da mostra.
In the Eye of the Storm é acima de tudo símbolo da resistência ucraniana. Não é a primeira vez que ameaçam apagar a herança cultural do país.
“Os ucranianos conquistaram o direito de criar sua própria identidade em lutas sangrentas, e somente agora, durante os últimos meses da guerra em grande escala, o mundo aceitou que a Ucrânia é um sujeito, e não um mero objeto, da história”, diz Timothy Snyder, historiador e professor da Universidade Yale, nos Estados Unidos, à plataforma de notícias Svidomi, sediada em Kiev.
No início do século 20, a Ucrânia se dividia entre os territórios ocidentais, sob domínio do Império Austro-Húngaro, e as regiões orientais, governadas pela Rússia Czarista.
“Mesmo na ausência de um único estado soberano, os ucranianos afirmaram sua identidade nacional por meio da preservação de sua língua e tradições e do desenvolvimento de sua cultura, incluindo a arte”, escreve Jennifer Mathers, professora de política internacional da Universidade Aberystwyth, no País de Gales, no artigo Evacuated artworks exhibit details attempts to wipe out Ukrainian culture — and shows what survives, publicado recentemente na plataforma The Conversation.
Depois da incorporação, em 1922, da Ucrânia à recém-criada União Soviética, os ucranianos ainda experimentaram, por quase uma década, a liberdade de poder ser quem eram: ucranianos. A arte então floresceu. Uma arte vivaz e eloquente, como se vê na mostra de Londres.
A tragédia do Holodomor
A partir de 1930, porém, um forte senso de identidade nacional fez a população se rebelar contra a política de coletivização dos bolcheviques, liderados por Joseph Stalin. Às manifestações ucranianas, o ditador comunista respondeu com leis agrícolas espúrias e matou por inanição quase 4 milhões de mulheres, homens e crianças, no chamado Holodomor — ou a Grande Fome
Enquanto isso, os russos deram início à destruição em massa da cultura ucraniana, inclusive com a “eliminação física de seus criadores”, como conta o historiador Volodymyr Viatrovych, à Svidomi. A justificativa: o “nacionalismo burguês” dos ucranianos.
Com as perseguições, prisões e assassinatos, a arte sofreu perdas catastróficas. “Por isso, nossa cultura é pouco conhecida no mundo", diz o também historiador Vladlen Maraiev, em seu canal no YouTube, History Without Myths.
A comparação entre a ameaça à cultura ucraniana na década de 1930 e hoje é inevitável. Mas há um diferença fundamental entre o passado e o presente, ambos terríveis. A Ucrânia conta agora com a ajuda de governos e sociedades ao redor do mundo. A prova do apoio está exposta nas galerias da Royal Academy of Arts.
Nascido em Kiev, o historiador Konstantin Akinsha, de 64 anos, é figura central na evacuação das obras modernistas. À iminência da invasão, de Budapeste, onde vive hoje, ele acionou seus contatos de dentro e de fora da Ucrânia. Com Yulia Lytvynets, diretora do Museu Nacional, decidiu organizar uma exposição itinerante.
Chuva de mísseis
Foram meses de uma troca intensa de telefonemas, e-mails e mensagens de WhatsApp com os europeus, em busca de espaço para a mostra. A primeira instituição a aceitá-la foi o Museo Nacional Thyssen-Bornemisza, em Madri. Agora, era preciso descobrir uma forma de levar as peças até lá.
“Isso era um grande problema porque não havia nenhuma companhia de seguros no mundo que segurasse qualquer coisa que passasse pela Ucrânia durante o bombardeio russo. Felizmente, tínhamos caminhões de transporte e carregadores profissionais, porque a empresa austríaca, Kunsttrans, havia criado uma filial em Kiev, antes da guerra”, escreve Akinsha, em In the Eye of the Storm—The Race to Save Ukraine’s Art Treasures, para o site da Trebuchet, ONG global dedicada a apoiar artistas locais, ao redor do mundo.
Ficou decidido que a evacuação dos trabalhos modernistas aconteceria na terça-feira, 15 de outubro de 2022. Às segundas, os russos costumavam bombardear Kiev. De manhã cedinho, Yulia carregou os caminhões. “Eles partiram”, avisou ela a Akinsha, algum tempo depois, “Achamos que éramos muito espertos”, lembra o historiador.
Meia hora depois da saída das obras, porém, uma chuva de mísseis russos despencou sobre várias cidades, inclusive a capital. Yulia e Akinsha passaram o dia acompanhando a remessa e monitorando o ataque dos invasores.
Às 10 e meia da noite, os caminhões finalmente chegaram à fronteira da Polônia. Naquele instante, um míssil desgovernado atingiu o território polonês. Imediatamente a travessia foi interrompida.
Luta feroz
“Através dos esforços estelares de diplomatas ucranianos, que acordaram todos os oficiais na Polônia (embora naquela noite eles não estivessem dormindo de qualquer maneira), os guardas da fronteira liberaram a passagem dos caminhões”, conta Akinsha. E, assim, as pinturas foram salvas — e, com elas, um pouco da identidade cultural da Ucrânia.
Se os modernistas estão protegidos em Londres, lá no leste europeu, os ataques ao patrimônio artístico da Ucrânia prosseguem, cada vez mais duros. Mas, mesmo sob ameaça constante, em meio à destruição e às pilhagens, os ucranianos não esmorecem na luta pela preservação de sua identidade.
Os curadores e funcionários do Museu Maidan, em Kiev, por exemplo. Quando os russos chegaram, eles esconderam todo o acervo da instituição. Hoje, vasculham os escombros em busca de objetos que contem a história dos ucranianos — uma coleção sobre a vida e a morte de pessoas comuns, em tempos de guerra. São roupas, sapatos, livros, objetos de casa, louças, bichinhos de pelúcia...
Como diz o diretor Ihor Poshyvailo, ao jornal inglês The Guardian, os artigos recolhidos “demonstram toda a crueldade russa, mas também explicam porque os ucranianos estão lutando tão ferozmente por sua liberdade”.