CANNES— Em viagem de trem, Wim Wenders teve de carregar na mala latas pesadas com os rolos de Paris, Texas, para a première mundial do filme em Cannes, em 1984. “Como a legendagem (em francês) foi feita na noite anterior, o único jeito de garantir a projeção era trazer o filme na bagagem, chegando ao cinema quase na hora da primeira sessão”, recordou recentemente o cineasta alemão, hoje com 79 anos, rindo.

Àquela altura, Wenders não sonhava causar tanto impacto com o drama familiar que lança olhar melancólico e contemplativo sobre a paisagem do oeste americano. O trabalho era só mais um filme de arte e de baixo orçamento (menos de US$ 2 milhões), como outros 20 títulos que concorriam à Palma de Ouro de Cannes daquela edição.

Mas bastou o júri, presidido pelo ator inglês Dirk Bogarde, assistir ao filme para que Paris, Texas levasse o prêmio máximo do festival francês, por unanimidade (o que é raro), tornando-se o maior êxito cinematográfico de Wenders. E 40 anos depois, a obra permanece como um dos road movies mais cultuados de todos os tempos.

Uma das atrações da 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, inaugurada na quarta-feira, 16 de outubro, Paris, Texas terá duas exibições especiais no evento para celebrar os seus 40 anos de lançamento. Trata-se de uma cópia restaurada digitalmente, escaneada em 4K, a partir do negativo original em 35mm, no laboratório italiano L’Immagine Ritrovata, de Bolonha.

“A restauração garante que a história do cinema continue viva e que as novas gerações tenham a chance de descobrir o filme na sala de cinema”, disse Wenders, ao apresentar o longa-metragem na mostra Cannes Classics, da última edição Festival de Cannes, que teve cobertura do NeoFeed.

“É curioso como muitos dos espectadores que assistiram a Paris, Texas em sua estreia, dizem ter visto outro filme. Como eles eram muito jovens, não se identificaram com o filme como agora, ao revê-lo, quando já se tornaram pais”, comentou Wenders. “E seus filhos, que assistem ao título pela primeira vez, são impactados como os pais foram no passado, o que me dá muita alegria.”

Uma coprodução entre Alemanha e França, Paris, Texas se tornou uma referência quando o assunto é road movie. O filme é um exemplo de como explorar com inteligência e sensibilidade o fascínio das histórias contadas na estrada, onde é possível desvendar não só a geografia como a cultura local, conforme o carro passa por linhas ferroviárias, motéis, veículos abandonados e outdoors.

No caso, o cenário é o oeste americano, uma paisagem de apelo universal, por transportar o espectador para o coração dos Estados Unidos. A região ainda representa o mito do sonho americano, de que tudo se consegue com muito trabalho e esforço, ainda que a intenção de Paris, Texas seja desconstruir essa ideia — o que o roteiro assinado por Sam Shepard (1943-2017), nascido nos subúrbios de Chicago, faz com maestria.

Wenders (à direita) não sonhava causar tanto impacto com o drama de Travis (Harry Dean Stanton) e Jane (Nastassja Kinski) (Foto: Wim Wenders Stiftung/Argos Films)

O ápice do filme são as cenas em que Travis reencontra a mulher, como se fosse um cliente comum do peep show (Foto: themoviedb.org)

Hunter Carson interpreta o garoto que parte em viagem com o pai em busca da mãe (Foto: themoviedb.org)

Nada na vida do protagonista corresponde ao cobiçado “american way of life” (Foto: themoviedb.org)

Inicialmente, Wenders e Shepard se encontraram para discutir um projeto baseado na vida e na obra do escritor de literatura policial Dashiell Hammett (1894-1961). Como Shepard não se interessou, ele propôs a trama sobre dois irmãos, com um deles sofrendo de perda de memória.

Nada na vida do protagonista corresponde ao cobiçado “american way of life”. Quando o espectador é apresentado a Travis Henderson (interpretado por Harry Dean Stanton), ele está vagando pelo deserto do Texas.

Depois que Travis passa mal, um médico consegue contatar o seu irmão, Walt Henderson (Dean Stockwell), que já o dava como morto. Após um sumiço de quatro anos, Travis volta para a família e tem a chance de se reconectar com o filho, Hunter (Hunter Carson).

Aos poucos, a plateia vai descobrindo o que aconteceu na vida de Travis, que aqui personifica o machismo texano. E dá para entender por que a sua mulher, Jane Henderson (Nastassja Kinski), acabou abandonando a família, passando a ganhar a vida em uma cabine de peep show, em Houston.

Paris, Texas tem o mérito de ter abordado a violência doméstica muito antes de o assunto começar a ser explorado nas telas.

Travis e Hunter embarcam em uma viagem em busca de Jane. O ápice do filme são as cenas em que ele reencontra a mulher, como se fosse um cliente comum do peep show, falando com ela, por intermédio de um interfone. Com um vidro especial separando-os, só Travis pode vê-la.

A segunda cena no lugar, quando o casal tem a conversa difícil, em circunstâncias tão inusitadas, é, por si só, uma aula de cinema. Principalmente no momento em que Jane desconfia se tratar do marido, mas só tem certeza quando apaga as luzes de sua cabine e passa a ver o rosto de quem está do outro lado.