Uma multidão de pessoas ansiosas se apinhava em uma noite fria de inverno na Praça São Pedro. Era 13 de março de 2013 e a espera não era à toa: eles aguardavam o novo papa. O anúncio surpreendeu: o cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio, 76 anos, um jesuíta, progressista, que até então ocupava o posto de arcebispo de Buenos Aires, foi o escolhido, contrariando apostas e palpites.
Em suas primeiras palavras aos fiéis, na varanda da Basílica de São Pedro, em meio às luzes de flashes de celulares, ele brincou que os cardeais tinham ido buscar um papa quase no fim do mundo.
A piada que arrancou risadas da multidão tinha um fundo de verdade: Bergoglio foi o primeiro nascido no Hemisfério Sul e em território americano, o primeiro latino-americano no posto e o único não europeu em mais de 1,2 mil anos.
A escolha inédita pela adoção do nome Francisco I, uma homenagem a São Francisco de Assis, padroeiro dos pobres, deu pistas da personalidade de Bergoglio, visto como um homem sem luxos. Também sinalizou como seria a sua trajetória como pontífice, voltada aos mais pobres e marginalizados e comprometida com o meio ambiente.
Ao morrer nesta segunda-feira, 21 de abril, aos 88 anos, o papa deixa um legado de tolerância, humildade e modernidade.
Francisco herdou uma Igreja em crise. Mergulhada em escândalos e esvaziada. Para se ter uma ideia, uma pesquisa da Pew Research mostra: em 1910, os latino-americanos, por exemplo, eram majoritariamente católicos (94%), enquanto os protestantes somavam 1% da população.
Em 2014, apenas 69% se identificavam como católicos, contra 19% de protestantes. A pesquisa considerou hispânicos nos Estados Unidos.
Nos últimos anos, porém, enquanto na Europa, o número de devotos católicos continuou a cair, no resto do mundo, aumentou. Um crescimento pequeno, mas um crescimento. O Anuário Estatístico da Igreja, de 2024, registra um acréscimo de 0,03% na população de fiéis, em relação ao ano anterior, chegando a 1,38 bilhão de devotos. A Europa foi a única região do planeta onde o catolicismo perdeu adeptos.
Francisco deixa para seu sucessor uma Igreja mais empática e aberta às pessoas que nunca tiveram chance entre os mais conservadores. Em 2023, por exemplo, ele defendeu a comunhão para divorciados. No mesmo ano, autorizou a bênção de casais homossexuais. Em certa ocasião, disse: “Se uma pessoa é gay e busca a Deus e tem boa vontade, quem sou eu para julgar?”
Francisco foi pego de surpresa pela própria eleição. Em Esperança, sua autobiografia, o papa Francisco contou que era considerado por vaticanistas um “kingmaker”, pois como cardeal latino-americano tinha autoridade de direcionar um número de votos a algum candidato. Nada além disso.
“Dizer que não esperava nada parecido, nunca na vida e muito menos no início daquele conclave, certamente é dizer pouco”, relatou no livro. Tanto é que Bergoglio chegou em Roma trazendo uma mala com poucas roupas e objetos e com uma passagem de volta comprada a tempo de chegar em Buenos Aires para as celebrações da Semana Santa.
Durante o conclave, porém, o clima mudou. O cardeal começou a perceber algumas insinuações e acenos em sua direção. Ao final da eleição, quando o nome Bergoglio ultrapassou o septuagésimo voto (é necessário atingir a maioria de 77 votos de 115) romperam os aplausos.
O primeiro a cumprimentá-lo foi o cardeal brasileiro Claudio Hummes que disse para ele não se esquecer dos pobres. “Aquela frase me marcou, eu a senti na minha carne. Foi ali que surgiu o nome Francisco”, relatou em seu livro.
Papa Francisco começou sua trajetória quebrando protocolos: dispensou o anel de papa, preferiu sua cruz de alpaca no lugar da de ouro. Também não fez questão dos sapatos vermelhos, optando por continuar com os seus ortopédicos. Não quis morar no apartamento papal e escolheu um quarto de hóspedes no Palácio de Santa Marta, local de hospedagem dos cardeais, como sua moradia.
Origens
Descendente de italianos, Jorge Mario Bergoglio é natural de Buenos Aires, na Argentina. Filho de Mario Bergoglio, contador, e Regina Maria Sivori, dona de casa, era o mais velho de cinco irmãos. O salário do pai era justo para manter a família, porém a mesa era farta, como contou em seu livro: “Éramos dignamente pobres, mas, na cozinha, fiéis à tradição italiana”.
A morte precoce de seu pai, aos 53 anos, fez com que ele assumisse o papel principalmente para a irmã caçula, Maria Elena, com quem manteve um forte vínculo até o fim.
“Ficar longe da minha irmã é talvez uma das minhas únicas renúncias, e também por isso, até hoje, telefono para ela todos os domingos à noite”, relatou. Foi para ela a primeira ligação de telefone após ser eleito.
Herdou do pai a paixão pelo futebol e pelo San Lorenzo, seu time de coração. Costumava frequentar o estádio com os pais e irmãos para assistir aos jogos. Gostava de jogar bola apesar de se considerar um “pata dura” e ter “dois pés esquerdos”.
Também da família veio o apreço pela religião, principalmente em razão de sua avó paterna, Rosa. A missa aos domingos era rotina e seu pai tinha um grande amigo, padre Enrico, que celebrou o casamento dos pais, o batizado dele e dos irmãos, e um líder espiritual presente na casa dos Bergoglio.
Cresceu em Flores, à época um bairro com múltiplas etnias, culturas e religiões. Naqueles quarteirões conviviam toda sorte de destinos: fugidos de guerra, bordadeiras religiosas, trabalhadores diversos, dançarinas e prostitutas.
Uma delas, chamada Porota, procurou Bergoglio quando ele já era bispo. Confessou que tinha sido prostituta, mas que agora estava aposentada e gostaria de cuidar de idosos.
“Não frequento muito a missa e com meu corpo fiz de tudo, mas agora quero cuidar dos corpos que não interessam a ninguém”, relembrou a conversa em seu livro. Mantiveram contato até o falecimento dela, quando foi chamado para conceder a unção dos enfermos.
Seu primeiro emprego, aos 14 anos, foi como faxineiro em uma fábrica de um amigo de seu pai. Trabalhou durante três anos durante as férias escolares. Depois, cursou o técnico de química em um grupo de apenas 14 estudantes. Seus colegas de turma viraram amigos e os quatro ainda vivos, o que inclui o papa, trocam cartas até hoje.
Após concluir os estudos decidiu que ao invés de optar pela medicina, um desejo de infância, seria padre. Sua mãe foi contra, pois esperava um futuro médico na família e via os anos de curso técnico como um preparatório para a universidade. O desgosto durou uns anos: sua mãe não o acompanhou em seus primeiros passos como seminarista.
O passo seguinte foi realizar o noviciado na Companhia de Jesus, instituição religiosa também conhecida como Ordem dos Jesuítas. Depois, completou sua formação com as licenciaturas em Filosofia e Teologia no Colégio Máximo San José. Também atuou como professor de Literatura e Psicologia, na Argentina, e concluiu seu doutorado na Philosophisch-Theologische Hochschule Sankt Georgen, em Frankfurt, Alemanha.
Apesar de avanços em diferentes temas, o legado do Papa Francisco não passou incólume a críticas e escândalos. Logo após assumir o posto foi acusado por grupos argentinos de direitos humanos de ter sido omisso e até cúmplice durante a ditadura militar no país (1976 -1983), algo que sempre negou. Em sua autobiografia, inclusive, ele relata histórias de como ajudou algumas pessoas perseguidas pelo regime.
Em uma visita a seu antecessor, Papa Bento XVI, recebeu uma caixa branca com documentos sobre os abusos sexuais, casos de corrupção, entre outras “passagens obscuras”. “Cheguei até aqui, tomei essas medidas e afastei essas pessoas; agora é com você”, disse Bento a Francisco, que aceitou a missão de seguir enfrentando os casos.
Durante o papado, mais histórias vieram à tona. Entre as que causaram mais repercussão estão o Sloane Avenue, em que um dos cardeais mais importantes do Vaticano foi condenado à prisão por comprar um prédio residencial em Londres com fundos da Igreja.
Em outro episódio, o papa teve de lidar com o escândalo sobre as escolas residenciais administradas por católicos no Canadá, nas quais inúmeros abusos (físicos, culturais e sexuais) foram cometidos contra crianças nativas entre o século 19 e a década de 70.
Em quase 12 anos de trajetória, ainda que tenha enfrentado muita pressão das alas mais conservadoras, o pontífice promoveu alguns avanços em direção às mulheres, à população LGBTQIA+ e a outros grupos tradicionalmente marginalizados pela Igreja Católica.
Um exemplo foi o aumento da presença de mulheres em postos mais altos: nomeou pela primeira vez uma diretora para os Museus do Vaticano, e uma secretária-geral para o Governatorato do Vaticano, responsável pela gestão do território, o que inclui infraestrutura e segurança. E indicou uma mulher para o cargo máximo o Dicastério para a Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, órgão da Santa Sé que supervisiona as ordens religiosas, entre outras atribuições.
Também autorizou a bênção para casais divorciados e homossexuais, embora não tenha ordenado mudanças na doutrina do matrimônio e tenha enfatizado que a igreja não reconhece o casamento e considera o relacionamento sexual “pecaminoso”. Permitiu a pessoas trans o batismo e a possibilidade de serem padrinhos, madrinhas e testemunhas em casamentos.
Inspirado por São Francisco, se dedicou à pauta do meio ambiente. Lançou em 2015, o Laudato Si: sobre o cuidado da casa comum, uma encíclica histórica sobre as mudanças climáticas, na qual expõe suas preocupações com o aquecimento global, o consumismo e a fragilidade dos mais pobres frente aos problemas do planeta.
“Infelizmente, muitos esforços na busca de soluções concretas para a crise ambiental acabam, com frequência, frustrados não só pela recusa dos poderosos, mas também pelo desinteresse dos outros”, escreveu no documento.
Na ocasião de dez anos de papado, a revista americana Time destacou o legado do pontífice no tema e a influência que a encíclica, lançada meses antes do Acordo de Paris, teve para a política mundial.
O Papa Francisco visitou mais de 60 países, entre eles os Emirados Árabes, durante a COP 28, em 2023. Ajudou a estabelecer o diálogo e a construir pontes, como na volta das relações diplomáticas entre Cuba e os Estados Unidos, em 2014, em que se envolveu pessoalmente.
Fez uma visita histórica ao Iraque, onde visitou a casa de Aiatolá Sistani, autoridade religiosa xiita no país. Foi durante essa viagem que surgiu a informação de um atentado a bomba para matá-lo, que felizmente foi interceptado pela polícia local.
Os flashes disparados em sua primeira noite como papa sinalizava que este também seria um pontificado de um novo tempo, o da era digital. Papa Francisco é popular nas redes: são 9,7 milhões de seguidores no Instagram e cerca de 53 milhões no X (ex- Twitter). Também ficou famoso no streaming com sua vida retratada em diferentes de filmes e séries, entre eles Dois Papas, e Pode me chamar de Francisco.