Na primavera boreal de 2002, o antropólogo americano Michael Mascha recebeu um ultimato de seu cardiologista: se desejasse continuar vivo, deveria abolir por completo o consumo de álcool. Foi um golpe duro. Como enófilo apaixonado, ele só conseguia pensar nas 500 garrafas de vinho guardadas em sua adega.
Mas fazer o quê? Ordens médicas são ordens médicas. “Rapidamente preparei minha coleção de vinhos para armazenamento a longo prazo, caso eu ficasse com uma doença terminal e pudesse voltar a beber”, conta. Ele então passou a brindar com água.
Logo, porém, o vazio deixado pelo vinho se fez presente. “Senti falta não apenas do sabor, mas também da descoberta e dos rituais que cercam a bebida — o girar, o cheirar, o servir, a conversa e o compartilhamento”.
Acostumado à exuberância das melhores cartas de vinho, ele não se conformava com a sem-gracice do “com ou sem gás”. Era preciso olhar para a água “em um contexto epicurista”, concluiu, na época.
E, ao prestar atenção ao que bebia, Mascha descobriu o maravilhoso mundo das águas minerais naturais. Um universo de sabores, aromas e texturas, capazes de potencializar as qualidades dos alimentos, do vinho, do uísque e dos drinques, em geral.
Começava ali uma mudança drástica de paradigmas, uma revolução de conceitos e crenças. Assim, a água passou de um líquido tido como insípido e inodoro, para uma bebida cheia de graça — repleta de surpresas, sofisticação e etiqueta.
Não à toa, a revista inglesa The Economist, em reportagem do fim de abril, define as águas premium ou gourmet como o “futuro do luxo”.
Tal qual o vinho e o café, elas se definem por seu terroir e são classificadas pelos sommeliers de água — sim, eles agora existem. Diferente das comuns, elas não se prestam apenas à hidratação, mas à degustação e à harmonização. Servem, portanto, ao deleite.
Ao longo das últimas duas décadas, o antropólogo Mascha lançou a plataforma Fine Waters, fundou a Fine Waters Academy e publicou o livro Fine Waters — A Connoisseur's Guide to the World's Most Distinctive Bottled Waters, definido pelo jornal londrino The Times como a "bíblia da água". Mais do que isso, ele ajudou a criar e consolidar um ecossistema vibrante, que hoje conquista mais e mais paladares mundo afora.
No ano passado, águas premium movimentaram globalmente US$ 36,2 bilhões. E até 2030 devem avançar a uma taxa de crescimento anual composta de 7,5% nos cálculos dos analistas da consultoria Grand View Research. A título de comparação, o mercado mundial de água engarrafada está previsto para expandir 4,13% por ano, conforme levantamento da empresa Statista.
É cada vez maior também o número de bares dedicados única e exclusivamente à água, como o LEV, em Lisboa, e o Aqua Water Bar, em Dubai. Entre os restaurantes e hotéis mais chiques, as cartas da bebida ganham robustez e popularidade.
Três estrelas Michelin, o italiano La Pergola, em Roma, por exemplo, oferece um cardápio com cerca de 50 tipos diferentes. Já, no espanhol O Lar do Leitón, na cidade de Ourense, famosa por suas fontes termais, as variedades somam 160 — é a maior carta de águas do mundo, segundo a Fine Waters.
Tais números se tornam ainda mais espantosos quando se descobre que as águas ditas finas são produzidas apenas pela natureza e engarrafadas na fonte. Aquelas que preservam suas características originais, sem sofrer qualquer modificação — xô, filtradas, purificadas e saborizadas.
Minerais decisivos
As propriedades organolépticas das águas premium estão diretamente relacionadas à composição mineral de seu terroir, explica o sommelier paulista Renato Frascino, em conversa com o NeoFeed.
Das profundezas da Terra e dos oceanos, de geleiras milenares e icebergs derretidos, das regiões mais inóspitas e intocadas do planeta… são tantos os lugares de onde elas podem vir quanto a profusão de suas nuances. Ou seja, há água para todos os gostos.
De olhar atento e paladar apurado, o bom sommelier é capaz de identificar uma dezena de características em apenas um gole: seu frescor, efervescência, claridade, acidez, estrutura, leveza, suavidade, equilíbrio, persistência. A italiana Acqua Panna, por exemplo, é “cremosa como um queijo brie”, como compara Frascino, porque brota dos subterrâneos repletos de mármore de uma porção da Toscana.
Pelos padrões internacionais, as águas são classificadas por seu índice de mineralidade — ou TDS, sigla em inglês para “sólidos totais dissolvidos”. Contada em miligramas por litro (mg/L), a taxa varia de zero a mais de 1,5 mil. E, quanto menor o TDS, mais leve é a água.
As de teores superbaixos combinam, por exemplo, com pratos da culinária japonesa, indica ao NeoFeed o mineiro Rodrigo Rezende, um dos sommeliers de água mais influentes do Brasil. As de baixa mineralidade, por sua vez, vão bem com risoto de cogumelos.
“Imaginemos um bife de costela maturado a seco, perfeitamente grelhado a 57°C sobre carvão”, propõe Mascha, em seu guia. “Não é leve nem sutil. Aqui, precisamos de uma água que resista aos sabores e à sensação na boca. Precisamos de uma água com alto teor de mineralidade e, geralmente, isso significa naturalmente gaseificada, com grandes bolhas macias combinando perfeitamente com a textura da carne.”
Para facilitar o trabalho dos iniciantes na arte de harmonizar água com comida, o antropólogo sugere considerar o vinho ideal para o prato a ser degustado. “Águas com TDS superbaixo e baixo são semelhantes aos vinhos brancos — desde os verdes vibrantes até os brancos mais substanciosos. Águas com mineralidade média a alta refletem tintos claros a médios, e as águas com mineralidade muito alta parecem vinhos tintos encorpados.”
Se a refeição incluir vinho, a harmonização deve ser entre as duas bebidas. Com os brancos, Mascha sugere águas com baixo teor mineral, enquanto os tintos exigem águas de mineralidade de média a alta. Importante estar atento à temperatura da água: ligeiramente mais alta do que a do vinho, para não tirar o foco da bebida alcóolica.
As águas de luxo custam naturalmente mais do que as comuns. Já eleita uma das melhores do mundo, com direito à menção no livro de Mascha, a mineira Cambuquira, por exemplo, é ofertada por cerca de R$ 7, a garrafa de 300 mililitros, enquanto as tradicionais são vendidas por, no máximo, R$ 2. Produzida em meio às montanhas da Serra Mantiqueira, a bebida é naturalmente gaseificada.
Mas há as que atingem alguns preços de deixar qualquer um boquiaberto. É o caso da alemã Nevas, o primeiro cuvée de água do mundo. Mistura de duas águas artesianas, de elevado TDS e a “textura perolada de um champagne”, a garrafa de 750 mililitros pode chegar a quase US$ 200. Sim, pouco mais de R$ 1,1 mil!
Está ficando longe o tempo em que a combinação de dois átomos de hidrogênio com um átomo de oxigênio resultava "apenas" em água.