O mercado de beleza árabe é um dos nichos que mais crescem no mundo. Apenas em 2024, movimentou US$ 93 bilhões, segundo o relatório State of the Global Islamic Economy Report. E, até 2027, deve gerar receitas próximas de US$ 130 bilhões, sustentando um crescimento anual de quase 9% — o dobro em relação ao convencional.
Embora sua expansão acelerada seja recente, o A-beauty está fundamentado em um livro sagrado de 1,4 mil anos — o Alcorão, base de toda a civilização islâmica. Os produtos conhecidos como halal (“permitido” ou “lícito”, em árabe) são manufaturados segundo seus preceitos.
Resumidamente, no caso de cosméticos e cuidados pessoais, eles não podem conter álcool, nenhum derivado de porco, como colágeno suíno, nem ser testado em animais — tudo isso é considerado como haram, o antônimo de halal. E a sua fabricação é supervisionada por autoridades islâmicas.
No Brasil, as empresas de certificação mais relevantes, a Fambrás e a CDIAL, emitem selos internacionais para atestar a procedência adequada de bens que podem ser consumidos pelos quase 2 bilhões de muçulmanos espalhados pelo mundo.
Deles, 1,5 milhão estão no Brasil — e esse número, embora tímido perto do resto do mundo, avança com a chegada de novos imigrantes sírios, palestinos e até de brasileiros convertidos.
É crescente também o número de influenciadoras por aqui falando de moda hijab, beleza halal e maquiagem islâmica, entre outros assuntos. Uma delas, com mais de 40 mil seguidores, foi a responsável por uma verdadeira virada de chave no Espaço Hi.
“A vinda da maquiadora Zei Chami para fazer o cabelo no meu salão de beleza nos colocou na rota dessa clientela”, conta ao NeoFeed Ellen Amazi, fundadora da empresa, localizada no bairro paulistano da Mooca. “Tive de me adaptar para atender a esse público, mas isso tornou meu negócio mais competitivo.”
O Espaço Hi tem um anexo especial para atender mulheres islâmicas — que não se sentem à vontade para mostrar o cabelo e outras partes do corpo para outros homens — e no qual, obviamente, apenas produtos halal são utilizados.
Atualmente, as mulheres muçulmanas são responsáveis por 30% das receitas do salão, que faturou R$ 1,2 milhão em 2024 e deve crescer 50% neste ano. Esse público fiel inspirou Ellen a fazer o maior investimento em ambientação e ampliação de portfólio na história da empresa — R$ 2 milhões. “Até a culinária árabe vamos incluir nas nossas amenidades: oferecendo xarope de tâmara e romã, homus e tabule às nossas clientes”, diz.
Alisadores made in Brazil
Se no salão de Ellen a adaptação foi essencial, para Lilian Khalil, a lacuna do mercado se tornou uma oportunidade de negócio. “Ainda é muito difícil achar shampoos, alisadores e condicionadores halal no Brasil”, diz a fundadora da marca Khalil for Woman, ao NeoFeed. Lilian desenvolveu uma linha halal de produtos capilares.
Essa produção tem saída nacional e internacional — os cosméticos são comercializados online, utilizados no salão de beleza da própria marca e exportados para a Arábia Saudita. “Os sauditas têm interesse especial pelos nossos alisadores de cabelo”, diz Lilian. As receitas da Khalili For Woman também aumentam acima do mercado. Devem alcançar R$ 1,8 milhão em 2025 e crescer 40% em 2026.
A empresária ressalta também o apelo sustentável desse tipo de produto pelo seu próprio processo de fabricação. Soha Mohamad Chabrawi, gerente religiosa do setor de qualidade da Fambrás, empresa vinculada à Federação Islâmica Brasileira que está certificando a linha de beleza Khalili For Woman, dá mais detalhes sobre o processo.
“O abate halal minimiza o sofrimento do animal para que não libere corticosteroides, hormônios do estresse, os quais são prejudiciais à nossa saúde”, diz ela ao NeoFeed. “Proíbem altos níveis de agrotóxicos, substâncias intoxicantes e venenosas, além de manejar o solo, os recursos naturais e humanos, sem utilizar mão de obra escrava e infantil e rastreando cadeias a fim de garantir que as regras sejam cumpridas.”
Apesar da ascensão do mercado — há dezenas de companhias brasileiras como a Khalili For Woman pleiteando certificação halal para cosméticos no Brasil — nenhuma empresa de capital aberto do setor de beleza oferece produtos halal por aqui.
Procurados pelo NeoFeed, o Boticário e a Natura não responderam se têm interesses futuros no setor, nem em operações internacionais — ao contrário da francesa L’Oréal, cuja operação indonésia é inteiramente certificada como halal desde 2019. A marca da Unilever, Dove, por sua vez, tem certificação halal na Malásia e na Arábia Saudita.
Hijabs, lenços e véus
Do outro espectro da beleza, no mercado da moda, a dificuldade das mulheres muçulmanas tem sido solucionada também por empreendedoras. A Karla Hijab, fundada pela brasileira convertida ao islamismo Karla Silva, atende centenas de pedidos por mês de hijabs (vestimenta que cobre o cabelo, o pescoço e, em alguns casos, o colo), toucas para ir à academia (com tecido respirável), lenços, véus e outras peças.
Recebendo encomendas pelo WhatsApp, site próprio, Shopee e Mercado Livre, Karla espera crescer 20% este ano. “As mulheres muçulmanas também são vaidosas”, diz ao NeoFeed. “E, claro, ninguém gosta de ir a uma festa e ver que sua roupa foi repetida por outra pessoa.” Por isso, Karla importa tecidos com no máximo duas estampas iguais às do seu fornecedor da Turquia.
Outro aspecto que impulsiona as centenas de outras lojas online de moda árabe no país é o material de qualidade elevada utilizado nas vestimentas, como seda do Egito e da Turquia, e o desejo de mulheres brasileiras que não são muçulmanas de viajar para países islâmicos com roupas adequadas ou mesmo as que preferem roupas mais largas, no tamanho plus size. “Há muito interesse entre ambas as culturas”, diz Soha, da Fambrás. “E isso é histórico.”
É possível que essa simpatia tenha se fortalecido com a intensificação da atividade comercial entre o Brasil e os países árabes por meio de uma história um tanto quanto curiosa. Na década de 1970, o Oriente Médio viveu uma crise política com os Estados Unidos devido à política de aumento de preço do petróleo praticada pela na época pela OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo).
O litígio foi tamanho que transações em dólares estavam praticamente inviabilizadas na Arábia Saudita — o que obviamente causou uma crise de abastecimento no país, inclusive de alimentos. Num gesto de boa-fé, o Brasil passou a fabricar proteína halal e literalmente trocá-la por petróleo.
“Foi um momento marcante nas relações exteriores entre os dois países”, diz Mohamad Orra Mourad, secretário-geral da Câmara de Comércio Árabe-Brasileira, ao NeoFeed. Atualmente, há milhares de empresas brasileiras com o certificado halal, em mercados como o de alimentos, finanças, farmacêutico, beleza, turismo, entre outros.
“Açaí, paçoquinha e água de coco são algumas das sensações brasileiras em Dubai, por exemplo”, elenca Soha, da Fambrás.
O que parece um nicho é, na verdade, uma porta aberta para um mercado bilionário. Empreendedoras como Ellen, Lilian e Karla provam que beleza e fé podem andar juntas há pelo menos 14 séculos.