Quando Tatiana Monteiro de Barros era menina, um teste vocacional indicou que ela tinha aptidão para ser bombeiro. Mas a garota sonhava com a moda e o ballet. Como era comum entre as filhas da elite paulistana nos início dos anos 2000, enquanto cursava administração, dos 18 aos 21 anos, Tatiana trabalhou na Daslu — àquela época, a meca das grifes de alto luxo no Brasil. Em 2002, ela trouxe de volta ao país a sofisticada marca de lingerie La Perla, transformando-se na franqueada mais jovem da empresa italiana no mundo, da qual foi representante por 13 anos.
Paralelamente, em 2011, ajudou a criar a agência de live marketing Multicase. Mas em 2020, durante a pandemia de covid-19, ela assumiria a vocação para bombeiro “quase” sem querer. E, hoje, aos 43 anos, Tatiana não vai apenas onde há fogo, mas também enchentes, secas, inundações, crises humanitárias… onde houver uma catástrofe, lá está ela. À frente do Movimento União BR (MUB), a empresária se firma como uma das empreendedoras sociais mais influentes e inovadoras do Brasil.
Nos últimos cinco anos, o MUB já atuou em três dezenas de emergências; criou uma rede de mais de 3 mil ONGs; arrecadou cerca de meio bilhão de reais, entre recursos e insumos; e ajudou cerca de 30 milhões de pessoas. Agora, o movimento amplia seu escopo e mira também na prevenção.
Na terça-feira, 1º de julho, Tatiana assinou um termo de cooperação com o governo paulista para melhorar a resposta da Defesa Civil aos desastres naturais. O pacote nasceu com um aporte de R$ 114 milhões e apoio da Firehouse. Recém-chegada ao país, a rede americana de lanchonetes foi fundada em 1994, na cidade de Jacksonville, na Flórida, pelos irmãos e ex-bombeiros Chris e Robin Sorensen — bombeiros, de novo!
E pensar que tudo começou com um grupo de WhatsApp. Frente à tragédia imposta pelo novo coronavírus, em março de 2020, Tatiana e a irmã Marcella decidiram agir. Tanto do lado materno, os Pinto Thomaz, quanto do paterno, os Monteiro de Barros, elas vêm de uma família de filantropos históricos — e, naturalmente, muito bem relacionados.
Não foi difícil, portanto, mobilizar empresas e ONGs para levar ajuda aos mais vulneráveis. De início, em pouquíssemo tempo, arrecadaram R$ 10 milhões para a compra de leitos de UTI para o Hospital do Fundão, no Rio de Janeiro.
O MUB é até hoje a maior rede de impacto do WhatsApp no mundo. Em setembro de 2021, a história do movimento foi levada à ONU por Will Cathcart, presidente da empresa, durante o evento Resposta à covid e o papel da tecnologia na recuperação global.
“A grande virada do União BR e da minha vida foi a crise do oxigênio no Amazonas”, lembra a empreendedora em conversa com o NeoFeed.
Nos primeiros dias de janeiro de 2021, no caos dos leitos superlotados, da falta de insumos, em meio ao pânico, milhares de pessoas morreram sufocadas nos hospitais amazonenses. Era preciso agir rapidamente. “Logo entendi que mandar um avião carregado de cilindros de oxigênio seria uma gota no oceano”, conta. “Um paciente grave usa três, quatro cilindros por dia.” A única saída seria a construção de usinas.
Por sugestão da Ambev, o MUB liderou a coalizão Juntos pelo Amazonas, formada por 30 empresas e ONGs locais. Na coordenação de uma logística extremamente complexa, usando aviões da FAB e da Latam, navios da Marinha, balsas, caminhões e tratores, o movimento levou oxigênio para o interior do estado, aliviando a pressão sobre Manaus.
Foram entregues 38 usinas e miniusinas, responsáveis pelo abastecimento de 36 dos 78 hospitais do Amazonas. As fábricas continuam em funcionamento até hoje.
Deixar um “legado duradouro” nos territórios onde o MUB atua, aliás, é uma das missões mais caras à Tatiana. O Centro de Reabilitação Pós-Covid, do Hospital Municipal Ronaldo Gazolla, no bairro do Acari, na zona norte do Rio de Janeiro, é um exemplo.
Em uma área ociosa de 2,4 mil metros quadrados, graças à doação de equipamentos hospitalares, itens voltados à reabilitação, mobiliário, material de construção, entre outros, o movimento ergueu um espaço que hoje atende outras condições clínicas para além das sequelas do novo coronavírus, por onde passam 1,5 mil pessoas por mês.
"E acho que o União BR, ele fica como esse legado desse período [a pandemia] em que a gente aprendeu a trabalhar em cooperação. Passada a covid, a gente não precisa esperar acabar o oxigênio de novo para as empresas se unirem e resolverem problemas da sociedade", diz Rodrigo Muccia, diretor de relações institucionais da Ambv, no relatório do União BR.
Da presença do MUB no Pantanal durante o fogaréu de 2020, nasceram brigadas de incêndio bem equipadas e bem treinadas. Depois de dois anos das enchentes no Rio Grande do Sul, o movimento continua na região, terminando a construção de escolas e casas para os desabrigados — equipadas com móveis e eletrodomésticos. E assim segue Tatiana e sua brigada de voluntários. As chuvas no litoral norte de São Paulo, a seca na Amazônia, as tempestades no sul da Bahia… depois da ação emergencial vem a transformação.
Conselheira do Regenera RS, fundo filantrópico de apoio à recosntrução do Rio Grande do Sul, e diretora do Instituto Helda Gerdau, Beatriz Johannpeter elogia a agilidade de articulação do União BR, como se lê também no documento de atividades da entidade.
A importância da escuta
Outra característica do MUB que o difere da imensa maioria das entidades dedicadas a catástrofes é o olhar e a escuta cuidadosa em relação às populações atendidas. E um dos episódios mais tocantes aconteceu em janeiro de 2023, quando eclodiu a tragédia humanitária na Terra Indígena Yanomami, em Roraima: crianças morrendo às centenas por falta de comida e cuidados para doenças tratáveis, como a malária.
Logo Tatiana percebeu que a doação de cestas básicas não funcionaria. “Eu queria escutar os yanomamis. Saber deles o que eles comem”, diz a empreendedora.
Depois de uma call com os líderes da reserva, ela procurou a Simple Nutri e a ONG de combate à fome e promoção da segurança alimentar desenvolveu uma receita conforme as necessidades e preferências dos indígenas. Uma espécie de “comida de astronauta” feita de peixe, frutas, legumes e grãos desidratados. Ah, o MUB também construiu um hospital na terra indígena.
Todo poder às Ongs locais
Outro diferencial do movimento é a insistência de Tatiana na importância das parcerias com ONGs locais. Geralmente, um dos pontos mais críticos da filantropia no Brasil é a preferência dada a organizações maiores, de caráter nacional. Elas são importantes, claro, mas as menores têm mais capilaridade e conhecem bem a região e a população a ser atendida. Assim, o trabalho ganha agilidade, assertividade e eficiência.
“Eu não sei quem eu ajudo. Não tenho ideia de quem são as Marias, os Josés, os Joões… todo esforço vale a pena”, afirma Tatiana. “É um esforço físico, emocional, de estratégia e de relacionamento. Eu atormento os doadores no sábado, no domingo. Emergência é emergência, não acontece só no horário comercial.”
Ela se emociona ao lembrar do rapaz que, no início do ano, a abordou na Universidade Stanford, nos Estados Unidos, enquanto fazia um curso de imersão em filantropia. “Ele me disse: ‘Meu pai foi tratado no Ronaldo Gazolla. Vocês salvaram a vida dele", os olhos da empreendedora se enchem de lágrimas.
Apartidário, o MUB nunca faz doações em dinheiro e não recebe recursos públicos. “A gente não quer sobrepor o trabalho do governo, não quer ser governo”, enfatiza. “Com a ajuda da iniciativa privada, queremos vir como um plus.” Desde a fundação da entidade, cerca de 350 empresas, de todos os setores econômicos, participaram das ações do União BR — além da Ambev e Latam, Itaú, Gerdau, Leroy Merlin, Zurich Seguradora, Hypera e muitas outras.
De plus em plus, a empreendedora com seu movimento vai transformando vidas. Fazendo jus ao relatório da psicóloga, guardado por sua mãe, Patrícia, durante todos esses anos: a menina Tatiana tem vocação para bombeiro.