A egotrip dos milionários do Vale do Silício parece não ter limites. Obcecados pela vida eterna, muitos investem fortunas em startups e protocolos de pesquisa focados em resolver o “problema” da morte. Agora, embevecidos pela própria “genialidade”, alguns estão fascinados pela ideia de ter superbebês.

É crescente a busca por empresas de testes genéticos cujas promessas passam pela seleção de embriões “destinados biologicamente" a ter um QI alto.

“Acho que eles têm a percepção de que são inteligentes e bem-sucedidos, e que merecem estar onde estão porque têm ‘bons genes'", diz o geneticista estatístico Alexander Gusev, professor associado da Universidade Harvard, em entrevista ao The Wall Street Journal (WSJ).

Como se lê em artigo do jornal San Francisco Standard, as novas ferramentas e as possibilidades oferecidas por elas são “o Vale do Silício em sua forma mais audaciosa”.

Peter Thiel, cofundador da PayPal e da Palantir; Sam Altman, da OpenAI; Vitalik Buterin, da Ethereum; Elad Gil, o maior investidor solo da Bay Area; Alexis Ohanian, da Reddit; Anne Wojcicki, da 23andMe; e Brian Armstrong, da Coinbase, são apenas uma porção dos nomes (e aportes milionários) por trás do boom das novas startups de análise genética.

E, entre eles, há os que se tornam clientes. Elon Musk teria recorrido à Orchid Health para o “projeto” de pelo menos um de seus quatro filhos com a executiva da Neuralink Shivon Zilis, conforme relata o jornal The Washington Post.

Décimo quarto rebento do bilionário, o caçula Seldon Lycurgus teria sido o embrião "vencedor" entre os avaliados pela startup. O que mais estaria "programado" para ter uma inteligência acima da média. Papai e mamãe são um orgulho só.

Como Shivon contou a Walter Isaacson, biógrafo do bilionário, Musk está obstinado por reprodução e QI: “Ele realmente quer que pessoas inteligentes tenham filhos”. Como ativista do conservador movimento pró-natalismo, o empresário anda assustado com a queda das taxas globais de natalidade. Segundo ele, “a grande ameaça à humanidade” — maior, inclusive, do que o aquecimento global.

Os "geniais" contra a IA

Aliás, uma parte considerável dos que sonham em povoar o mundo com exemplares humanos de alto QI vem das fileiras pró-natalistas. Egressos das indústrias de tecnologia e de venture capital, e fundadores da Pronatalist.org, Malcolm e Simone Collins querem ter muitos e muitos filhos. E muitos e muitos filhos muito “melhores”.

“Conectados às ideologias mais estranhas do Vale do Silício”, como define a plataforma Slate, os “eugenistas hipsters”, como os Collins já são chamados, pretendem ter dez filhos. Simone está na quinta gestação — um menino, conta o casal ao WSJ.

O embrião do qual Simone está grávida foi analisado pela healthtech Herasight. Com os dados fornecidos pela startup, o casal se lançou em complicados cálculos probabilísticos, combinando a propensão a doenças com as pontuações de QI. Chegaram àquele com baixo risco para câncer e alta chance de ser “excepcionalmente” inteligente.

Outra turma a ver nos superbebês a salvação da humanidade é formada por um grupo de cientistas da computação sediado na cidade de Berkeley, no coração do Vale do Silício. Os The Rationalists (“os racionalistas”) têm certeza de que a única forma de fazer frente ao avanço da inteligência artificial é com um exército de humanos geniais. Só eles seriam capazes de controlar os algoritmos.

"O tipo de filho"

O projeto para tornar as futuras gerações mais inteligentes seria apenas mais um capricho narcísico da elite high-tech se a ideia por trás desse delírio megalômano não resvalasse na eugenia — a teoria estapafúrdia do fim do século 19, segundo a qual seria possível “melhorar” os seres humanos por meio da reprodução seletiva de indivíduos considerados superiores física e intelectualmente.

Empresários, investidores e pesquisadores envolvidos com a seleção embrionária tentam justificar suas ambições com a teoria do neozelandês Michael Agar. Dizendo-se especialista em bioética, em 2004, ele lançou um livro no qual fundamenta o conceito de “eugenia liberal”.

Diferente da “tradicional”, como seus seguidores definem, coercitiva e patrocinada pelo Estado, a de agora nada mais é do que o direito dos pais de melhorar determinadas características de seus filhos, com o uso das tecnologias emergentes.

A obra Liberal Eugenics: In Defence of Human Enhancement (“Eugenia Liberal: Em Defesa do Aprimoramento Humano”, em tradução livre) “considera casos reais de pais que escolhem que tipo de filho ter”.

No início do ano, Shivon Zilis anunciou o nascimento de seu quarto filho com Elon Musk, o menino Seldon Lycurgus, cujo embrião teria sido escolhido pela startup Orchid Genomics. Na imagem, o casal aparece com seus dois filhos mais velhos, os gêmeos Strider e Azure, nascidos em 2021 (Foto: Reprodução X)

Simone e Malcolm Collins são um dos líderes do movimento pró-natalismo, de incentivo à reprodução para "salvar" o mundo do colapso populacional. De 2023, ano da imagem acima, até agora, eles tiveram mais duas crianças e estão à espera da quinta (Foto: commons.wikimedia.org)

Michael Agar é o criador do conceito de "eugenia liberal", o direito dos pais de "aprimorar" seus filhos (Foto: Reprodução X)

James Watson, ganhador do Nobel pela descoberta da estrutura do DNA, perdeu todos os títulos honorários ao comentar a supremacia dos brancos nos testes de inteligência (Foto: commons.wikimedia.org)

Escolher o tipo de filho? Para a imensa maioria de nós, soa esquisito — e um tanto aterrador.

Vale lembrar: em 2019, o americano James Watson, codescobridor da estrutura do DNA e ganhador do Nobel de 1962, perdeu todos os títulos honorários ao defender, em um documentário para a televisão, que a genética tem um papel determinante na diferença das notas que brancos e negros atingem em testes de inteligência e coeficiente intelectual.

Pelo menos por enquanto, a liberdade de escolher o “tipo de filho” é privilégio dos milionários. A startup Nucleus, por exemplo, cobra US$ 6,5 mil pela análise de um embrião. A Herasight, US$ 50 mil pelo rastreamento de uma centena deles. Há de se considerar ainda os custos da fertilização in vitro.

Além disso, a probabilidade de um embrião resultar em gravidez na primeira FIV varia de 40% a 60%. Resumindo: os custos de um superbebê facilmente vão às alturas — o que, para os endinheirados do Vale do Silício, não é nenhum problema.

Como são acessíveis a poucos, os novos exames envolvem questões éticas importantes. Em um mundo dominado por injustiças, a "criação" de pessoas mais inteligentes aprofundaria ainda mais as desigualdades.

"É justo?", questiona Hank Greely, diretor do Centro de Direito e Biociências da Universidade Stanford, ao WSJ. “É um ótimo enredo de ficção científica: os ricos criam uma supercasta genética que assume o poder sobre o resto de nós, os proletários.”

E se todo mundo resolver ter o mesmo tipo de filho? Aí, sim, é grande o perigo de a humanidade colapsar.

Sermos diferentes uns dos outros nos protege enquanto espécie — a nós e a todos os organismos vivos. A diversidade genética é um dos pilares mais fundamentais da vida na Terra.

Os adeptos da filosofia da "eugenia liberal" argumentam:  O que seriam 100, 200 mil crianças superinteligentes em meio à população global? Alguém falou em equidade ou igualdade?

Determinismo genético, não

A boa notícia é que os métodos usados para seleção de embriões com esse ou aquele traço não são tão certeiros quanto as healthtechs anunciam. "Se as pessoas acham que assim vão ter um filho mais inteligente, elas estão sendo enganadas", diz o médico Salmo Ruskin, CEO da Genetika Laboratórios, em conversa com o NeoFeed.

Até 2003, quando o Projeto Genoma Humano terminou de mapear e sequenciar nosso DNA, os testes genéticos eram monogênicos. Ou seja, funcionavam bem para identificar doenças causadas por alterações em um único gene, como a hemofilia, a anemia falciforme e a fibrose cística.

A partir daquele momento, foram criados os testes poligênicos e a medicina passou a estimar a propensão a distúrbios associados a várias mutações, como problemas do coração, diabetes tipo 2, obesidade, câncer de mama e depressão, entre outros.

Mas, esses exames indicam um risco, não uma certeza — mesmo porque a manifestação (ou não) dessas afecções sofre também grande influência do estilo de vida.

As startups de criação de bebês do tipo, entretanto, garantem ter desenvolvido algoritmos capazes de encontrar entre milhares e milhares de sequências de DNA as combinações que determinariam alto QI.

"Apesar dos avanços, por enquanto, a gente talvez não conheça nem metade das regiões do genoma relacionadas à inteligência", explica Raskin, também diretor científico da Sociedade Brasileira de Genética Médica e Genômica.

O que se tem até o momento é que o componente genético da inteligência varia de 5% a 10%. "Estudos mostram que, no melhor dos cenários, seria possível selecionar embriões com 2,5 pontos a mais no QI", completa o médico. Ou seja, vantagem nenhuma.

As novas empresas, no entanto, anunciam bebês com, em média, seis pontos a mais no coeficiente de inteligência em comparação às crianças concebidas naturalmente — sem, no entanto, revelar as bases científicas de suas promessas.

Fora isso, inteligência não é como a cor dos olhos ou o tom de pele.

"Ainda que um dia venhamos a decifrar todo o código genético da inteligência, mesmo assim, isso vai conferir um aumento de QI muito pequeno", afirma Raskin. "A maior parte da inteligência é dada pelo ambiente... o lar onde a criança cresceu, os estímulos que ela recebeu, seu acesso à comida, ao saneamento básico..."

A elite do Vale do Silício, porém, acha que tudo pode ser resolvido com tecnologia, observa o médico. "E uma das maravilhas da vida é justamente que ela não é tão matemática e tão tecnológica quanto esse pessoal supõe", diz ele. "Os que mais falam de determinismo genético são os que menos entendem de genética."