Observado sob a perspectiva do número de carros produzidos, o grupo Volkswagen é um gigante e a Tesla, uma nanica. Em 2020, a fabricante alemã emplacou 9,3 milhões de carros e terminou em primeiro lugar no ranking global de veículos leves (automóveis de passeio e comerciais leve). A americana Tesla, ao contrário, vendeu pouco mais de meio milhão de carros.
Analisado sob outro ângulo, a situação se inverte. A Tesla vale quase US$ 700 bilhões. E a Volkswagen 137,7 bilhões de euros (aproximadamente US$ 165 bilhões). O que explica essa diferença de valor de mercado, sendo que a fabricante alemã vende 18 vezes mais carros do que sua rival americana?
A resposta é que a Tesla é a montadora mais bem posicionada no mercado para liderar o segmento de carros elétricos, considerado o futuro da indústria automobilística, segundo a aposta de muitos analistas de mercado – e isso se reflete no valor de suas ações e na sua capitalização.
Mas a Volkswagen tem um plano para se impor neste novo mundo eletrificado. Só neste ano, a meta é vender 1 milhão de carros elétricos ou híbridos, dez vezes mais do que 2019.
A ambição, no entanto, é muito maior. A fabricante alemã vai construir seis fábricas de baterias, chamadas de gigafábricas, apenas na Europa para “equipar” seus carros. Cada uma produzirá 40 GWh por ano, totalizando 240 GWh.
A partir de 2023, carros das marcas Volkswagen, Audi, Porsche, Lamborghini, Bugatti, Seat, Skoda e Bentley (todas do grupo) serão fabricados com redução no custo das baterias de até 50% no segmento de entrada e de até 30% no segmento superior. Segundo estimativas, as baterias representam cerca de 48% do custo em um carro elétrico de entrada.
"Na média, vamos reduzir o custo dos sistemas de baterias para significativamente abaixo de 100 euros por quilowatt-hora”, disse Thomas Schmall, ex-presidente da Volkswagen do Brasil, que lidera a iniciativa a nível global.
Na prática, considerando o mercado brasileiro, o Volkswagen ID.3, um carro médio 100% elétrico, teria 25% de redução em seu preço. Se esta lógica fosse aplicada ao Renault Zoe, por exemplo, que é vendido no Brasil por R$ 203.678, ele poderia custar R$ 152.758 – um preço muito mais competitivo (mas ainda caro).
A nova Volkswagen emerge com carros da família ID. Na Europa, já foram lançados o ID.3, um hatch do porte do Golf, e o ID.4, um SUV do porte do Taos. Uma fonte do setor disse ao NeoFeed que o ID.4 será a principal aposta da marca no Brasil, que prevê mais três modelos.
O ID.4 é o primeiro modelo global da nova Volkswagen. Essa família ganhará ainda o ID.4 GTX 4x4 (projeto ID Crozz). Se a Volkswagen optar por carros de categorias mais elevadas, virão ainda o esportivo ID.5 e o ID.6 X (um SUV 7 lugares, desenvolvido para o mercado chinês).
A grande revolução, entretanto, será a forma como os carros passarão a ser fabricados e vendidos. Haverá a integração do software no veículo com a experiência digital do cliente. Mais ou menos como a Tesla faz com seus carros, mas numa escala gigantesca e aprimorada, com novas soluções na matéria-prima das baterias para usar em 6 milhões de carros só da marca VW.
O automóvel passa a ser um produto baseado em software, com todas as informações colocadas em uma nuvem de dados da própria empresa. Assim, o portfólio de carros da Volkswagen será enxuto.
O conceito de carro do ano vai ser substituído pela atualização constante do modelo. Portanto, a Volkswagen fabricará o veículo sempre “completo”, ou seja, com todas as funcionalidades disponíveis. O cliente poderá comprar o carro com um determinado pacote e mudar de categoria ao longo de seu ciclo de vida.
Basta adquirir as funções disponíveis no software VW. Da mesma forma, mesmo o carro completo poderá ser atualizado, ao passar dos anos. Atualmente, as configurações individuais dos carros são definidas pelo hardware quando o veículo é adquirido. Ao mudar para o software, o carro terá praticamente tudo a bordo, permitindo sua utilização sob demanda. Segundo a Volkswagen, isso reduzirá bastante a complexidade da produção.
"A mobilidade elétrica foi apenas o começo: a transformação real ainda está por vir. Com nossa estratégia, vamos acelerar rumo ao futuro digital", disse Ralf Brandstätter, CEO da marca Volkswagen. "Nos próximos anos, vamos mudar a Volkswagen como nunca antes."
Já nos próximos dois anos, a estimativa é que a Volkswagen tenha 500 mil carros europeus conectados e “inteligentes”, aprendendo com as experiências dos clientes durante sua utilização. Esse software será atualizado a cada 12 semanas e estará disponível já neste verão europeu a bordo do ID.3.
Não por outro motivo, Michael Burry, investidor americano que ganhou fama ao prever a crise de 2008 e apostar contra a bolha do mercado imobiliário, vai na contramão das apostas no rali dos carros elétricos. Enquanto a maioria joga suas fichas na Tesla, Burry aposta na Volkswagen.
“Investidores subestimam o tamanho, a escala, as marcas, o poder duradouro e os recursos da Volkswagen”, escreveu Burry no Twitter. “Vocês já se perguntaram quem é dona da Bentley, Bugatti, Lamborghini, Porsche, Ducatti, etc? A Volkswagen.” Além do mais, ao contrário da Volkswagen, que reservou 16 bilhões de euros para a mobilidade, a Tesla ainda depende da venda de créditos de carbono para ser lucrativa.
Globalmente, a Volkswagen planeja lançar 75 modelos totalmente elétricos e projeta vender cerca de 26 milhões de veículos elétricos de 2021 a 2029. Estrategicamente, a empresa adiou em dois anos (para 2025) os planos de um carro elétrico abaixo do ID.3 (que deverá se chamar ID.2 e será compacto, do porte do Polo), com preço a partir de 20 mil euros.
Finalmente, se a família de carros ID e as gigafábricas de baterias já chamam atenção de gente como Burry, a maior dessas novidades chegará somente em 2026, com a nova plataforma MEB, exclusiva para veículos elétricos, que terá até realidade aumentada projetada no parabrisas. O inédito Volkswagen Trinity (guardado a sete chaves) será o carro-chave desta nova era.
O Trinity será mais rápido, levará mais carga e terá maior alcance do que a atual geração de carros elétricos da Volks. Vislumbrando um mundo futurista, o Trinity e os demais modelos da plataforma MEB (que pode ter até uma Kombi elétrica e autônoma) serão carros inteligentes, atualizáveis e potencialmente rentáveis.
A família ID será a ponte entre o futuro e o passado, onde se situam os veículos sem inteligência, com seus poluentes motores a combustão interna e ainda vendidos no velho conceito de carro do ano.
Sergio Quintanilha é editor-chefe do site Guia do Carro. Trabalhou nas revistas Quatro Rodas, Carro, Carro Hoje, Motor Quatro e Motor Show. Atua na cobertura do setor automotivo desde 1989 e atualmente desenvolve uma tese de doutorado na USP sobre as transformações no significado do automóvel. Twitter: @QuintaSergio