O que há em comum entre os vinhos Domaine Leroy e o Domaine Rousset-Peyraguey Crème de Tête Teerthyatra 2011? Ambos seguem preceitos da vinificação natural. Porém, ostentam certificações diferentes. O primeiro deles, por exemplo, é certificado como biodinâmico pelo instituto Demeter. Já o segundo segue os preceitos da Vin Méthode Nature (VMN).
Os dois exemplos ilustram a dificuldade de classificar um vinho como orgânico, biodinâmico ou natural. Mas por trás dessa polêmica há um mercado bilionário que não para de crescer e ganha cada vez mais consumidores no mundo e no Brasil.
O instituto Transparency Market Research estimou que as vendas de vinhos orgânicos atingiram US$ 11 bilhões no mundo em 2020. Essa cifra deve chegar a US$ 30 bilhões em 2030.
O escritor inglês e especialista no tema, Monty Waldin, comparou que entre 1999 e 2018 a superfície de vinhedos orgânicos e biodinâmicos certificados partiu de menos de 1% do total de vinhedos no mundo para cerca de 5% deste total, totalizando perto de 324 mil hectares.
O sucesso do segmento pode ser visto pelas feiras especializadas em vinhos naturais. A mais conhecida delas, a londrina RAW, começou em 2011 recebendo 1,8 mil visitantes. Desde 2016, recebe cerca de 10 mil visitantes, além de ganhar edições itinerantes nos Estados Unidos, Canadá, Suíça e Alemanha.
No Brasil, o principal evento dos vinhos naturais viu crescimento semelhante. Idealizado por Lis Cereja, restauratrice da Enoteca Saint VinSaint e enófila, a Feira Naturebas começou em 2013 e reuniu apenas 20 expositores e 100 frequentadores.
Na edição presencial mais recente, em 2019, realizada na Casa das Caldeiras em São Paulo, saltou para 120 expositores e mais de 2 mil frequentadores. No ano passado, por conta da pandemia, o evento foi em formato híbrido, com 30 pequenos encontros presenciais e 300 apresentações virtuais.
“O movimento dos vinhos naturais cresceu e hoje não é apenas um movimento agrícola de resistência, como na década de 1980. Hoje é uma moda e é normal vermos oportunistas e perdidos no meio. Alguns como boas intenções, mas sem saber o que estão fazendo”, diz Lis ao NeoFeed.
E prossegue com sua análise. “Neste sentido, criar um sistema de organização com critérios ajuda a evitar a bagunça dentro do estilo. Costumo dizer que não é porque os vinhos são mais selvagens que a categoria deve ser uma bagunça.”
Como forma de suprir o vácuo na categoria e tentar colocar uma definição sobre vinhos naturais, um grupo de produtores franceses desenvolveu a certificação Vin Méthode Nature (VMN).
O grupo, criado em 2020, causou algum barulho no mercado, pois é a primeira certificação a surgir na França – e o simples fato de não ser proibida ou impugnada pela INAO, instituo que regulamenta as denominações de origem francesas, já foi uma grande conquista.
A nova organização já certificou 85 vinhos da safra 2019 e agora na safra 2020 (vinhos que saem ao mercado em 2021) já são mais de 400 rótulos de 167 produtores. A grande maioria é de pequenos produtores franceses que, por hora, estão fora dos holofotes dos críticos.
Na cartilha da VMN, as principais regras atinentes à produção são que as uvas devem ter certificação de cultivo orgânico (por qualquer outro certificador); a colheita deve ser manual; e a fermentação deve ser espontânea, sem adição de fermento industrial.
Além disso, não é permitida correções no mosto ou vinho (de ácidos, taninos, açúcar e água) e o processos físicos tecnológicos também são proibidos (osmose reversa, filtração tangencial, termo-vinificação), assim como clarificação e estabilização forçadas, entre outras regras mais técnicas.
A polêmica começa com as diferentes associações que também tentam colocar uma normativa de práticas que identificariam um vinho natural. Existem grupos mais informais, em que não há um instituto fiscalizador por trás ou selos para estampar garrafas, como a Triple “A”, mas que se apoia em renomados produtores como Lapierre, Foradori, Occhipinti, Overnoy, Huët, Nicolas Joly ou Prieuré-Roch.
Como exemplo, a cartilha do Triple “A” segue os mesmos preceitos da VMN, permitindo apenas o controle da temperatura durante a fermentação e a adição de sulfitos apenas no engarrafamento, mas sem estabelecer limites de quantidade.
Há também associações formalmente constituídas e reconhecidas pela Comunidade Europeia, como a italiana VinNatur, bastante próxima da VMN. O grupo agrega mais de 170 vinícolas de 10 países europeus e, em 2020, foi autorizada pela União Europeia a colocar o logotipo do grupo nos rótulos das vinícolas inspecionadas.
As regras, no geral, são parecidas, mas teores de sulfitos e o uso de algumas técnicas, como uso de irrigação, adição de gás inertes e filtração, são mais flexíveis.
A Master of Wine inglesa Jancis Robinson levanta ainda outra questão sobre a dinâmica desses grupos. Quando representam um número pequeno de vinícoloas, ainda é viável manter um programa de inspeção e auditoria dos membros.
Mas, com mais de uma centena de vinícolas, os custos e tempo para isso se tornam inviáveis. Como saber se um produtor não fez parte da colheita de forma mecânica? Como saber se algum lote de vinho não utilizou leveduras comerciais? São alguns questionamentos colocados pela expert.
No Brasil, Rodrigo Malizia, sócio da importadora Cellar Vinhos, comenta que o cenário de vinhos naturais ainda é confuso. “Tenho clientes que pedem recomendação de vinho natural e primeiro tenho que perguntar o que ele quer dizer como vinho natural”, diz Malizia ao NeoFeed.
Lis Cereja concorda que o termo não é perfeito, mas traduz com alguma proximidade o conceito dos vinhos feitos com pouca intervenção. “Uso sempre o comparativo com o suco de laranja. Há o suco industrial e o natural, feito com laranjas espremidas na hora. Independente da preferência de cada um, é fácil notar que são dois sabores bem diferentes”, afirma.
Aqui vale separar a filosofia da produção com a expressão do vinho na taça. Algumas vezes, os consumidores confundem um vinho túrbido e com acidez volátil mais alta (ácido que lembra o vinagre) com um vinho natural. O que nem sempre é verdade.
“Neste sentido, as certificações ajudam a guiar o consumidor”, diz Malizia, que começará a identificar as formas de produção dos vinhos de seu catálogo (orgânico, biodinâmico ou natural, se certificado ou não).
Mas a polêmica vai ainda mais longe. Qual a diferença entre o vinho orgânico, biodinâmico e natural? De forma simplificada, a ordem acima representa um funil de requisitos, em que o natural seria o mais radical, com regras mais restritivas.
O vinho orgânico é feito com uvas de cultivo orgânico, com fermentação espontânea, mas que permite uma série de processos físicos e correções (com produtos orgânicos) no vinho.
O biodinamismo é um grau além do orgânico e tem uma visão holística de uma fazenda, onde além das práticas orgânicas, mescla astrologia e homeopatia, com aversão às correções.
O natural, por sua vez, encampa as práticas orgânicas e alguns aspectos da biodinâmica, como a vitivinicultura sem uso de maquinário e nenhuma correção do vinho, mas com menor uso de sulfitos.
Com uma visão mais pragmática, o enólogo italiano Alberto Antonini, considerado um dos mais influentes no mundo e sócio da argentina Alto Las Hormigas, diz que gasta anualmente cerca de US$ 1,7 mil para certificar um rótulo orgânico para o mercado brasileiro.
“Para um vinho europeu, esse gasto chega a 2 mil euros por rótulo”, diz Antonini ao NeoFeed. “Mas acredito que é importante para o consumidor saber que há um terceiro que inspeciona e certifica os vinhos.”
Sobre os vinhos naturais no Brasil, Antonini lembra que em sua mais recente visita, três anos atrás, degustou alguns vinhos naturais e constatou que muitos já estavam em estágio avançado de oxidação.
“Por terem pouco ou nada de sulfito, são vinhos mais frágeis”, afirma o enólogo. “Imagine este vinho com pouca proteção, apenas seus taninos e acidez como escudos ao oxigênio, em um contêiner que pode chegar a 60 graus Celsius quando cruza a linha do Equador.”
Malizia, da Cellar Vinhos, comenta que um grande aprendizado veio na leitura do livro do americano Kermit Lynch, importador de vinhos que conta que sua operação mudou completamente quando começou a trasladar os vinhos em contêineres refrigerados.
“Isto faz muita diferença para os vinhos naturais”, afirma Malizia. “Em toda a cadeia logística transportamos nossos vinhos refrigerados. Nesses contêineres, a temperatura não passa dos 18 graus Celsius.”
Há várias opções para o consumidor brasileiro. Uma delas é o Domaine Prieuré-Roch Nuits-St- Georges 1er. Cru Vieilles Vignes 2017 (Borgonha, França), que custa R$ 3.698, na World Wine. Outra é o Domaine Grosbois Chinon Gabare 2018 (Chinon, Loire), por R$ 345, na Cellar Vinhos. Ou o Clemens Busch Gutswein Riesling Trocken 2018 (Mosel, Alemanha), que saiu R$ 281,22, na Premium Wines.
A lista de vinhos "naturebas" inclui também o Domaine Rousset-Peyraguey Crème de Tête Teerthyatra 2011 (Sauternes, Bordeaux), por R$ 579, na De la Croix ; o Alto Las Hormigas Appellation Gualtallary 2018 (Uco, Argentina), por R$ 422, na World Wine, e o Alfredo Maestro El Marciano 2018 (Sierra de Gredos, Espanha), por R$ 159, na Wines4U.
Apesar das polêmicas, todos os entrevistados concordam que os vinhos naturais pressupõem maior cuidado com o ambiente e a natureza, e maior preocupação com os preceitos da sustentabilidade. O que naturalmente conduz a uvas mais sanas e expressivas, que, por sua vez, é uma condição sine qua non para se fazer grandes vinhos. Naturais ou não.