Por mais paradoxal que possa soar, foi de uns anos para cá que a gastronomia carioca se maritimizou de vez. Foi quando o pescador Antônio Amaral passou a apresentar robalos, pargos e olhetes pescados um a um, ainda em rigor mortis. Tal enrijecimento muscular denotava frescor, resfriamento eficaz e ausência de deterioração bacteriana.
Com isso, conquistou grandes restaurantes, com casas como Lasai e Oteque, e chefs como o francês Damien Montecer. Hoje, o chef não só recorre a frutos de mar de origem para o restaurante Bazzar à Vins, em Ipanema, como vende o próprio peixe. Acompanha o desenvolvimento de tilápias com água do mar, desenvolve produtos à base delas e, com eles, conta expandir a rede de varejo, montar um bar e franquear seu conceito de lanchonetes, o Tiba.
Natural da Côte d’Azur, na França, Montecer nasceu comendo peixe, especializou-se no tema nas cozinhas dos estrelados Le Bernardin e Daniel, em Nova York, e, no Brasil, sofria para encontrar o padrão que lhe agradava. Só em 2019, começou a encontrar fornecedores que praticavam pesca humanizada como Amaral. Mas então, uma surpresa.
“Eu estava trabalhando com pargo, robalo e linguado, aí vem um cara oferecendo tilápia. Como assim? Eu faço uma cozinha de produto e vou servir tilápia?”, questionou-se o chef. “O cara insistiu que era diferente e me convenceu a conhecer”.
O “cara” era Marco de Luca que, aproveitando sua expertise familiar com a Frescatto Company (empresa que faturou R$830 milhões no ano passado tendo o salmão como carro-chefe) e investimento de R$ 6 milhões, montara a Tilápias Mangaratiba, uma fazenda inovadora a 85 quilômetros do Rio. Por inovação entenda-se o primeiro cultivo de tilápia em água salgada.
“Quando a maré sobe, vem água do mar, senão é da cachoeira. Os técnicos dizem até que a gente não cria peixe, cria água, porque reproduz um ambiente de estuário, como onde o robalo se alimenta, por exemplo”, explica Luca.
Quarto maior produtor mundial, o Brasil fornece mais de 500 mil toneladas de tilápias por mês. Todavia, as 50 toneladas mensais de Mangaratiba são as únicas que usam água do mar e não usam gaiolas, nem antibióticos. Por nadarem livremente, sua carne é mais firme, rica em proteínas e saborosa do que a de cativeiros convencionais.
“A galinha criada solta é caipira. A gente faz a tilápia caipira”, define Luca. “Como um linguado, tem a carne bem branca e a textura fina, mas é ainda mais versátil”, acredita Montecer que, de entusiasta, passou a chef consultor e sócio de um braço da fazenda, o Tiba Container.
Com uma unidade em Mangaratiba, ao lado da criação e do Condomínio Portobello (onde Neymar, Deborah Secco e Gabriel Jesus têm mansões), e outra aberta recentemente na Barra da Tijuca, os containers oferecem uma dúzia de pratos à base do peixe
São duas “caixonas de metal” que servem itens como croquete, torresmo, ceviche, pipoca, hambúrguer, coxinha e hot-dog de tilápia fresca. Vai daí que, em vez de lanchonetes, o francês prefere chamá-las de “fast gourmet” ou “fast farm”. “Muito chef diz que usa frango orgânico e não tem ideia de onde a ave vem. Aqui, a gente mesmo tira a tilápia do tanque e prepara. É tank to table em receitas casuais”, justifica.
Para otimizar o ingrediente “nativo e sustentável”, Damien o desestruturou em novos cortes. O mais nobre é o lombo, cujo quilo custa R$ 57, o filé, R$ 45, a carne moída, R$ 20.
“A tilápia cabe na boca de todas as classes sociais e idades. É ótima para criança”, afirma o chef. Escolas como TTH Barilan, Colégio Liessin e Centro Educacional Criarte e redes do varejo como Zona Sul Supermercados e Hortifruti (que já aderiram a Tilápias Mangaratiba), parecem comprovar a tese.
Os peixes igualmente aprovados pelo Pão de Açúcar começam a ser vendidos ainda em setembro, reforçando uma cartela de clientes que já conta com o hypado bar Marinho Atlântica, o hotel cinco-estrelas Fairmont e a rede de culinária asiática Gurumê.
“O salmão amontoado em cativeiro, repleto de corantes e antibióticos, ainda é o peixe mais popular nos restaurantes japoneses, mas essa tilápia pode se tornar o grande peixe branco da história para sushi”, arrisca Luca.
Enquanto busca aumentar sua rede de distribuição para outros restaurantes orientais na capital fluminense e chegar ao faturamento anual de R$ 7 milhões em 2023, Luca constrói em Mangaratiba seu próprio “bistrô”, um “farm to table” sob demanda, a passos de seus abastados vizinhos do Portobello.
“Ali, a água que sai dos tanques fertiliza a terra das frutas, verduras e pancs (plantas alimentícias não convencionais) orgânicas. Aí temos ovos caipiras, desses azuis. Um fogão a lenha, uma mesa debaixo de uma árvore e o Damien criando degustações inéditas com tudo colhido na hora”, explica o empresário. “É onde vou trabalhar o produto local com simplicidade e respeito. Um verdadeiro luxo”, complementa o francês.
As experiências no campo se iniciam nas próximas semanas e são mais um sinal de que a maré é boa para a expansão dos negócios. Tanto assim que, enquanto finaliza os detalhes de sua chef’s table, a dupla busca um ponto no Leblon para o primeiro Tibar (uma versão mais boêmia e elegante dos “fast gourmets”) e finaliza uma cozinha de produção no Recreio dos Bandeirantes para lançar uma rede de franquias dos containers.