Aos 75 anos, José Garcia tem um grande orgulho dos 62 mil pés de cacau espalhados pela propriedade de 70 hectares. “Isso aqui antes era um deserto”, conta. “Transformamos a terra degradada em floresta.”
Dono do sítio Top Frutas, ele chegou em Medicilândia, cidade paraense às margens da Transamazônica, em meados da década de 1970, no auge dos projetos de colonização promovidos pelo Incra.
Paulista, nascido e criado em uma família de pequenos agricultores, foi para o Norte com os pais, a mulher e filhos. “A gente tinha aquela ansiedade de possuir mais terra, aumentar a produção”, lembra. Lá, os Garcia se dedicaram ao cacau.
Há dez anos, porém, a plantação deu sinais de exaustão. Foi quando José ouviu falar em cacau geneticamente modificado - cacau clone, como ele chama. “Tivemos a ousadia de trazer a técnica para cá”, diz. Deu muito certo. Os 700 gramas produzidos por cada pé de cacau, há cinco anos, hoje são três quilos –o triplo da média brasileira.
“A meta é chegarmos a 200 toneladas por ano”, prevê José. Atualmente, com apenas as lavouras mais antigas dando frutos, o equivalente a 30% da plantação, o agricultor produz 60 toneladas, por ano.
Ao renovar plantação de cacau, José mudou o sistema de operação do sítio e adotou a consorciação de culturas. Apontada por especialistas como uma das alternativas mais sustentáveis à monocultura, a técnica prevê o cultivo de dois ou mais tipos diferentes de cultura, na mesma lavoura.
No Top frutas, os cacaueiros dividem a roça com pés de banana, abacaxi, goiaba, abacate. Toda a produção é vendida com exclusividade para a Cargill. Se, por um lado, a exuberância das lavouras de José ilustra à perfeição o potencial da bioeconomia da Amazônia; por outro, a escassez de iniciativas como as dele é o retrato do desperdício de oportunidades oferecidas pela floresta.
Em tempos de urgência climática, carência de áreas agrícolas e ameaça à segurança alimentar global, o desenvolvimento sustentável da região é imprescindível para o futuro da alimentação. Um futuro, aliás, que poderia já ter sido presente – não fosse a lógica ainda dominante de olhar para o bioma como uma fonte inesgotável de riquezas.
Entre 2017 e 2019, dos 955 produtos exportados por negócios sediados na Amazônia, apenas 64 vieram de extrativismo florestal não-madeireiro, sistemas agroflorestais, pesca e piscicultura e hortifruticultura tropical.
Ou seja, eram compatíveis com a floresta, como mostra o estudo Oportunidades para Exportação de Produtos Compatíveis com a Floresta na Amazônia Brasileira, realizado pelo projeto Amazônia 2030, uma iniciativa de pesquisadores brasileiros para a elaboração de um plano de ações para a região.
Pimenta, cacau, açaí, mel, óleos, peixes e frutas movimentaram, no período, US$ 298 milhões anuais. O mercado global dos mesmos produtos, no entanto, chegou a US$ 176,6 bilhões.
“Se as empresas da Amazônia que exportam produtos compatíveis com a floresta conseguissem atingir esse patamar, faturariam cerca de US$ 2,3 bilhões, por ano”, lê-se no relatório.
Um dos entraves para os negócios da floresta é a ineficiência operacional e a falta de garantia fitossanitária, de padrão de qualidade e/ou mão de obra treinada. “Nada disso é rocket science. É o básico”, diz Salo Coslovsky, autor da pesquisa do Amazônia 2030 e professor da Universidade de Nova York. “Mas não é o básico para quem mora longe dos grandes centros consumidores.”
A história da castanha-do-pará é exemplar. Em todos os cantos do mundo, o produto é conhecido como “castanha do Brasil”, mas o mercado global é abastecido com frutos vindos da Bolívia. Em 1998, os produtores brasileiros não atenderam às normas da União Europeia e foram ultrapassados pelos bolivianos.
“Ponto a ponto, em praticamente tudo, o Brasil é melhor do que a Bolívia”, lembra Salo. “É maior, mais rico, conta com mais saída para o mar, não tem diferentes grupos étnicos, mas eles se organizaram e fizeram.”
As empresas bolivianas se uniram, compraram um laboratório de aflatoxinas (substâncias cancerígenas produzidas por fungos), contrataram consultores de qualidade, desenvolveram novas tecnologias de produção e controle sanitário, disseminaram boas práticas e convenceram o governo a simplificar os trâmites da exportação.
Uma das alternativas para impulsionar a bioeconomia da Amazônia, indicam os especialistas, é a parceria entre produtores locais, grandes companhias, governo e academia. Em 2020, a JBS lançou o Fundo JBS Amazônia.
Com o objetivo de melhorar a qualidade de vida das comunidades tradicionais e indígenas e incentivar o desenvolvimento científico e tecnológico do bioma, a iniciativa já comprometeu R$ 60 milhões, em doze projetos. “Os projetos apoiados fomentam a pesquisa e o desenvolvimento de ingredientes e produtos a partir da biodiversidade do bioma amazônico, gerando negócios para a região”, diz Joanita Maestri Karoleski, presidente do Fundo JBS pela Amazônia
Um deles é o Pesca Justa e Sustentável, em parceria com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e a Associação dos Produtores Rurais do Carauari (Asproc), no interior do Amazonas, a cerca de 800 quilômetros de Manaus, por via pluvial. A ideia é fortalecer o manejo do pirarucu, de modo a que o produto conquiste novos mercados.
“Pensamos em algo que pudesse potencializar a produção, empoderar a comunidade e criar novos produtos e conquistar novos mercados”, explica Viviane Rodrigues Verdolin dos Santos, pesquisadora da Embrapa. Orçada em cerca de R$ 1,6 milhão, a iniciativa prevê a criação de um protocolo de gestão hídrica e a capacitação da mão de obra, segundo os preceitos da economia circular.
“Nossa ideia é que eles [a comunidade local] aprendam a transformar em produtos nobres resíduos que ou vão para o lixo ou são vendidos por um valor agregado muito baixo”, diz Viviane. O couro de pirarucu, por exemplo, é valiosíssimo nos mercados nacional e internacional. Graças ao projeto, os ribeirinhos também vão produzir embutidos e defumados, a partir de partes menos nobres do peixe.
Como o pirarucu, a pimenta jiquitaia baniwa é outro patrimônio da floresta. Os baniwa vivem nas cabeceiras do rio Negro, entre Brasil, Colômbia e Venezuela. Somam de 15 mil a 18 mil pessoas, em 200 comunidades e sítios. Do lado de cá, são cerca de 6 mil, em 85 agrupamentos. Com apoio do Instituto Socioambiental e da Organização Indígena da Bacia do Içana, a pimenta baniwa ganhou o mundo.
Até a pandemia do novo coronavírus, a produção anual dos cerca de 170 quilos acontecia em quatro galpões; as casas de pimenta. Com balcões e pias de inox, estufa para a secagem dos frutos, todas seguem os padrões sanitários, exigidos pela lei. Atualmente, apenas um funciona –as outras estão em reforma.
Cerca de 30 empresas revendem a pimenta –com algumas, o contrato prevê o repasse de 10% do lucro, para o povo indígena. É o caso da Soul Brasil Cuisine, do casal Letícia e Peter Feddersen. Fundada em 2018, a empresa produz condimentos com produtos nativos brasileiros e exporta para Cingapura, Malásia, França, Estados Unidos e Porto Rico.
Os Feddersen também trabalham com comunidades ribeirinhas e quilombolas. Segundo Letícia, dessa forma, a Soul Brasil ajuda preservar a floresta em pé. “A gente não está inventando nenhuma roda. Os saberes desses povos são ancestrais”, diz Leticia. “O mundo busca histórias e quando a gente faz esses relatos, os olhinhos brilham.” E história é o que não falta na floresta.
Uma delas, a dos ribeirinhos de Boca do Acre, no Amazonas, levou a paulista Luisa Abram para a região. Em 2014, ainda na faculdade de gastronomia, ela decidiu produzir o próprio chocolate e encontrou no cacau nativo da Amazônia sua matéria-prima.
Seus primeiros fornecedores foram os agricultores do Mapiá e Alto Purus. Hoje, ela também compra cacau de mais quatro produtores. É um sucesso. Luisa deve fechar 2022 com seis toneladas de chocolate, vendidas em 150 pontos no Brasil e 250 nos Estados Unidos, além de França, Espanha, Holanda e Cingapura.
Para os novos empreendedores da Amazônia, o grande fascínio é a possibilidade de negócios lucrativos, claro, mas também a oportunidade de fazer a diferença para o planeta. Fundada em 2020, a Belterra nasceu com propósito de, por meio de parcerias agrícolas, transformar o modo de produção predominante na região – de sistemas pouco rentáveis, degradadores, para modelos ambientalmente sustentáveis, economicamente vantajosos e regenerativos, como as agroflorestas.
A Belterra trabalha com agricultores familiares, completamente desassistidos pelo poder público. Dos cerca de 6 milhões de produtores rurais no Brasil, de 3,5 milhões a 4 milhões são de pequeno e médio porte, responsáveis por 20% das terras agrícolas do país.
“O Brasil é um grande produtor agrícola, mas em commodities. A diversidade de alimentos em nossos pratos vem dos pequenos produtores”, diz Valmir Ortega, fundador da empresa. De tudo o que comemos, 70% vêm deles.
A empresa nasceu no Pará e hoje está em Rondônia, Mato Grosso, Bahia e Minas Gerais. Já estabeleceu parceria com 45 agricultores, 20 dos quais na floresta. Até o final de 2023, devem chegar a 250 produtores, 200 na região. Na floresta, até 2030, devem ser incorporados mais 20 000 hectares de terra e 1, 5 mil agricultores. Sem manter a floresta em pé e sem incluir as comunidades tradicionais e indígenas na geração de riqueza, o futuro é inviável.