As lembranças da infância fizeram do suíço Mathis Wackernagel um dos pesquisadores mais respeitados do mundo. Em 1996, ele e o canadense William Rees, o supervisor de seu doutorado na Universidade da Colúmbia Britânica, em Vancouver, formularam o conceito de pegada ecológica.
O método permite medir o impacto humano no meio ambiente. A pegada ecológica compara o estilo de vida de cada um de nós, as operações de uma empresa ou as atividades de um país com o poder de regeneração do planeta.
Com isso, é possível determinar quantas “Terras” são necessárias para manter nossos padrões de produção e consumo.
Atualmente, segundo o Global Footprint Network, organização internacional presidida por Mathis, seria necessário quase um outro planeta inteiro (exato 1,75) para suprir nossas demandas. Em outras palavras, a Terra precisaria de um ano e oito meses para regenerar os recursos usados ao longo de um ano.
Se hoje essas teorias nos soam familiar, na época em que Mathis era criança, pouquíssimo se falava sobre o assunto. Mas, desde garoto, o pesquisador percebeu a incongruência de um sistema baseado na possibilidade irreal de uma expansão ilimitada, em um mundo de recursos finitos.
Nascido em 1962, na Basiléia, cidade às margens do rio Reno, e formado em engenharia mecânica, ele cresceu ouvindo as histórias de seus pais e avós sobre a escassez de alimentos durante a Segunda Guerra Mundial. “Eles contavam que a comida disponível para sete meses deveria ser racionada para durar um ano”, lembra ele, em entrevista ao Neofeed.
Além disso, Mathis viveu as consequências da crise do petróleo de 1973. Na ocasião, a Suíça proibiu a circulação de carros em três domingos por mês. “Aqueles domingos eram incríveis. Nós, as crianças, podíamos andar de bicicleta pelas ruas, avenidas e estradas”, conta. “Naqueles dias, eu pensava em como seria bom um futuro livre do combustível fóssil.”
Confira a seguir, os principais trechos da conversa.
A pegada ecológica global tem diminuído?
Desde a década de 1970, a humanidade vive em déficit ecológico. Durante esse período, foram registradas pequenas reduções, mas a maioria aconteceu em decorrência de desastres – e não por esforços conjuntos, em nível global. Isoladamente, alguns países conseguiram reduzir suas pegadas ecológicas, sobretudo aqueles com as pegadas per capita muito altas. Hoje em dia, o uso dos recursos naturais está, no mínimo, 75% acima do poder de renovação da Terra.
Mantido o ritmo atual de produção e consumo, onde vamos parar?
Cerca de 85% da população mundial vive em países com déficit ecológico. Destes, 72% enfrentam um desafio duplo. Além da demanda por recursos biológicos exceder a regeneração, a renda dessas nações é inferior à média mundial, o que limita muito a compra de recursos extras. A persistência desse abuso leva a tensões. Choques nas cadeias de suprimentos associados à epidemia global e à invasão russa da Ucrânia revelaram que nossos recursos são muito mais frágeis do que normalmente se reconhece. Podemos viver do esgotamento, e até encorajar o esgotamento, mas, como acontece com o dinheiro, não podemos faz isso para sempre. As consequências podem ser terríveis: eventos climáticos extremos, insuficiência de água doce, perda de biodiversidade, queda na qualidade do solo agrícola, pobreza. Ou mudamos esses padrões por meio de ações globais ou em consequência dos desastres. E, seguramente, a segunda opção não é a ideal.
Qual é a pegada global da cadeia agroalimentar?
Por ser uma necessidade imediata e diária, a alimentação é um componente particularmente sensível do nosso portifólio de recursos. O sistema alimentar ocupa 55% da biocapacidade do planeta. Quatro em cada dez habitantes do planeta estão em países onde a biocapacidade alimentar doméstica está abaixo da quantidade de alimentos que a população dessas nações consome – e com uma renda média inferior à média global. Ou seja, esses países têm menos poder de compra de alimentos nos mercados internacionais, o que aumenta o risco de insegurança alimentar e pobreza.
E como reverter esse quadro?
Nenhum tópico é mais urgente do que o da alimentação. Ainda não está claro como será possível alimentar, de forma sustentável, uma população cada vez maior, dadas as mudanças climáticas, as restrições de recursos e o aumento da demanda por sequestro de carbono. A menos que a alimentação sustentável esteja no topo das prioridades econômicas de cada país, é improvável que ocorra a transformação necessária. Essa preocupação não pode ser apenas dos países ricos, mas, sobretudo, nos de rendas mais baixas e onde vivem 72% da população global. Iniciamos uma colaboração com a Universidade de Wageningen, na Holanda, e o Instituto de Pesquisa em Agricultura Orgânica [FiBL, na sigla em inglês] para investigarmos como tornar o sistema alimentar compatível com o planeta. É urgente rever toda a cadeia, da fazenda à mesa.
"O Brasil é um dos países mais ricos em biocapacidade. Mas não aproveitou essa vantagem"
Como você avalia as políticas ambientais brasileiras?
Essa é uma grande questão. O Brasil é um dos países mais ricos em biocapacidade. Mas o Brasil não aproveitou essa vantagem. É como se a Suíça dissesse: “Temos muito ouro em nossos bancos, mas não nos importamos e vamos deixar as portas abertas à noite para que os ladrões levem tudo”. A segurança dos recursos naturais é fundamental para o sucesso a longo prazo. O Brasil pode ter uma vantagem competitiva enorme, mas o país corre o risco de não a aproveitar, caso continue a não proteger seus recursos, que são incríveis.
Em sua opinião, qual é o principal obstáculo para a redução da pegada ecológica global?
É acreditar que a sobrecarga do planeta não é um risco, que os níveis atuais de produção podem ser perpetuados e que o dinheiro obtido com essas operações pode nos proteger contra as consequências da degradação ambiental. A sobrecarga, em si, é o segundo maior perigo para a humanidade. A maior ameaça é fechar os olhos para o problema. Temos medo de perder nossos privilégios se fizermos as mudanças necessárias. Mas é do interesse pessoal de cada um de nós que a situação melhore. Comer, por exemplo, é um ato de interesse pessoal, necessário para garantir nossa sobrevivência. Devemos usar a mesma lógica com o clima e o meio ambiente.