Os inhambus, codornas e perdizes estão de volta. Abelhas e besouros, entre outros insetos polinizadores, também movimentam a paisagem. Aos poucos, a vida retoma seu curso na roça de dona Netinha, como a agricultora Maria Luzinete Alves Santos é conhecida.
Vindos de Salvador, ela, o marido e seis filhos chegaram ao assentamento Oziel Alves III, em Planaltina, no Distrito Federal, em 2002. O cenário era de terra arrasada. Em nada lembrava a exuberância do Cerrado. Com o solo empobrecido, o terreno era dominado por gramíneas invasoras. Era difícil plantar por lá.
Em novembro de 2021, com o incentivo dos caçulas Alf e Vinícius Lima, a família aderiu ao programa Sistemas Agrocerratenses Inclusivos (SACIs ou SACE). Conduzido por pesquisadores do Centro de Desenvolvimento Sustentável, da Universidade de Brasília, com o apoio da filial brasileira do World Wide Fund for Nature (WWF), da ONG Pequi e da empresa Tikré, de consultoria ambiental, o projeto combina a restauração do bioma com a produção de alimentos, incluindo as comunidades locais na geração de riqueza.
Os SACIs são compostos por 70% de espécies nativas, explica Paula Lima, especialista em agroecologia e uma das idealizadoras dos sistemas agrocerratenses. Os outros 30%, por culturas estranhas ao bioma, desde que sejam de baixo potencial invasor e de colheita anual.
“É importante não negar o ecossistema original”, adverte o engenheiro agrônomo Vinicius Barbosa Pereira, analista de restauração da vegetação nativa do WWF Brasil. “Não adianta querer implementar a silvicultura nos moldes dos programas da Amazônia e da Mata Atlântica. No Cerrado, não tem árvore; 70% da vegetação é capim e arbusto.”
E, nesse ponto, o sistema de integração lavoura-pecuária-floresta (SILP) é também uma alternativa promissora para aumentar a produtividade de grãos, carne e leite e, ao mesmo tempo, reduzir a degradação dos recursos naturais, lê-se em relatório da Embrapa.
“Os resultados obtidos com os SILPs, no Cerrado, demonstram os benefícios desses sistemas na produção agropecuária e na melhoria das propriedades físicas, químicas e biológicas do solo”, avaliam os especialistas, no documento. “Além disso, são extremamente interessantes por conferir elevada rentabilidade ao negócio, com ricos relativamente baixos.”
De toda a vegetação original do Cerrado, quase metade está degradada. O ritmo de devastação chega a ser quatro vezes mais intenso do que o da Amazônia, segundo o Instituto Sociedade, População e Natureza. O bioma é um dos mais prejudicados pelo desmatamento ilegal.
A roça de dona Netinha, porém, acena com a possibilidade de um futuro mais sustentável, inclusivo e rentoso. Com orgulho, Vinícius conta: nos 7,5 hectares da propriedade, pés de espécies nativas, como pequi e baru, dividem a área com feijão, milho, abóbora, milho, cúrcuma e banana.
É possível, sim, conciliar a restauração do ecossistema original com a produção de alimentos. Segundo maior bioma brasileiro, a savana tropical mais rica do mundo guarda 30% da biodiversidade do país e 5%, do planeta. Considerada “o berço das águas brasileiras”, abriga as nascentes de oito das doze bacias hidrográficas do país.
Assim como a Amazônia, o Cerrado é fundamental não apenas para a biodiversidade global como tem um papel preponderante no futuro da alimentação. Daqueles 2 milhões de quilômetros quadrados, sai a maior parte dos alimentos que abastecem tanto o mercado interno quanto o externo. Só o Centro-Oeste, onde está grande parte do bioma, responde sozinho por 47,5% de toda a produção, especialmente grãos e pecuária.
Assim como a Amazônia, o Cerrado é fundamental não apenas para a biodiversidade global como tem um papel preponderante no futuro da alimentação
Mas o Cerrado pode ir além das culturas tradicionais. Muitas espécies nativas, como o baru, pequi, cagaita, mangaba, babaçu e jatobá, entre tantas outras, possuem altas concentrações de fibras, proteínas, vitaminas e minerais, mas a maioria é subutilizada, reforça o analista do WWF Brasil.
O baru é uma exceção. Mais nutritivo do que a maioria das castanhas, o fruto dessa leguminosa arbórea é celebrado aqui e lá fora. Suas amêndoas movimentam US$ 5,1 milhões por ano, pelos cálculos da Fact.MR. Até 2033, deve bater US$ 47 milhões, a uma taxa composta de crescimento anual da ordem de 24,8%.
“O Brasil é de longe o maior exportador do mundo, responsável por 50% do cultivo das castanhas de baru”, informa levantamento da da empresa de inteligência de mercado, sediada em Dublin. “O país exporta 25% e 22% da produção para a Europa e os Estados Unidos, respectivamente.” O óleo de baru também é muito usado, sobretudo pela indústria de cosméticos.
As cerca de 600 plantas nativas do Cerrado, com reconhecido valor nutricional, oferecem um mundo de oportunidades em negócios e inovações. Podem, por exemplo, ser usadas como fontes proteicas e ingredientes para a indústria plant-based, na formulação de alimentos vegetais análogos aos de origem animal. O futuro está apenas começando, mas exige urgência.