O anúncio da Americanas a respeito da descoberta de um rombo, ou “inconsistência contábil”, de R$ 20 bilhões, trouxe à tona novamente as discussões a respeito da maturidade da governança corporativa no País.
A informação divulgada pela varejista caiu como uma bomba na quarta-feira à noite, 11 de janeiro, e os investidores não perdoaram no pregão desta quinta-feira, 12 de janeiro. As ações da Americanas fecharam o dia com queda de 76,17%, a R$ 2,86.
A queda fez a Americanas perder R$ 8,37 bilhões em valor de mercado, segundo dados do TradeMap, fazendo ela passar a valer R$ 2,4 bilhões. O tamanho do tombo foi equivalente ao valor de mercado da Minerva, que vale R$ 8,4 bilhões. E só não foi pior porque os papeis negociaram em leilão, fora do pregão tradicional.
Para além dos temores sobre potenciais consequências financeiras, os investidores demonstram incredulidade com o fato de um rombo dessa magnitude ter passado despercebido por tanto tempo. Em teleconferência para tratar do assunto, ocorrida na manhã de quinta, o agora ex-CEO da companhia Sergio Rial estima que o problema foi se acumulando ao longo de vários anos.
Por estar listada no Novo Mercado, segmento da Bolsa brasileira com as exigências mais duras em termos de governança corporativa, a Americanas tem de implementar mecanismos de controle interno para prevenir esse tipo de situação. Até mais do que é obrigatório por lei. Entre as exigências estão a instalação de áreas de auditoria interna, compliance e comitê de auditoria.
Além disso, a companhia tem suas contas auditadas por uma das principais firmas globais, a PwC. A auditoria não apontou qualquer problema no balanço de 2021. Procurada pelo NeoFeed, a PwC informou que não comenta balanços auditados por questões de confidencialidade contratual.
Mas, na avaliação de Herbert Steinberg, sócio, fundador e presidente do conselho da Mesa Corporate Governance, ter os melhores mecanismos e os melhores profissionais ao seu lado não é suficiente. Especialmente se não há, de fato, uma cultura na empresa preocupada em ter uma governança corporativa ativa, capaz de evitar problemas e ser transparente com os stakeholders.
“Os instrumentos certamente existem na Americanas, senão ela não estaria no Novo Mercado”, diz Steinberg. “Mas provavelmente não são vividos como precisam e isso nasce de uma cultura de check list, de apenas listar o que se tem, e de não viver e aplicar de fato a política de governança.”
No âmbito da Americanas, essa questão foi suscitada, inclusive, pelo próprio Rial. Na teleconferência, ele disse ter identificado sinais de que “o nível de transparência, de querer falar de problemas e desafios, não era tão fluido como deveria”, o que acabou ajudando a formar o rombo de R$ 20 bilhões.
Para Steinberg, o episódio é mais um sintoma da falta de maturidade do tema no País, com os diversos organismos responsáveis por fiscalizar e promover o bom funcionamento do mercado de capitais brasileiro mostrando leniência.
A referência mais óbvia é o IRB. Assim como a Americanas, o ressegurador fazia parte do Novo Mercado, mas, em 2020, a gestora Squadra revelou uma série de inconsistências nos balanços da empresa. Para piorar, executivos chegaram a mentir sobre Warren Buffett estar considerando adquirir as ações da empresa.
Quem também passou por situação semelhante foi a CVC Brasil, outra empresa do Novo Mercado. Em 2020, a companhia encontrou erros e distorções contábeis em suas demonstrações financeiras de R$ 350 milhões.
“As instituições, a CVM (Comissão de Valores Mobiliários), a B3, as auditorias não estão fiscalizando realmente, não há punição para inibir novos acontecimentos”, diz Steinberg. “A governança corporativa por aqui é para inglês ver.”
Procuradas pelo NeoFeed, CVM e B3 não retornaram os pedidos por comentários sobre o caso da Americanas até a publicação da reportagem.
Meio cheio
Ainda que seja grave, nem todos os especialistas entendem que o caso da Americanas representa um fracasso para a governança corporativa no Brasil, nem dos próprios instrumentos de controle da varejista.
Para Jonathan Mazon, sócio do escritório de advocacia Junqueira Ie Advogados e especialista em mercado de capitais e governança corporativa, a iniciativa da varejista de informar o mercado sobre o episódio e tomar medidas para remediar demonstra que os mecanismos de governança da companhia, embora tenham falhado em prevenir a situação, estão atuando corretamente para remediar a falha.
Os analistas de mercado, porém, não compartilham a visão de falha. Para eles, o rombo de R$ 20 bilhões anunciado pela Americanas é um caso grave de transparência de informações a todos os investidores.
“Não posso especular sobre o que aconteceu no passado, sobre o que foi feito, porque esse caso não foi detectado, mas olhando para o que está acontecendo agora, a empresa está seguindo o manual da governança corporativa passo a passo”, afirma Mazon.
Em sua avaliação, no mundo ideal, os mecanismos de controle conseguiriam prevenir os problemas antes que eles acontecessem. Mas é impossível impedir que malfeitos ocorram nas empresas, especialmente quando a cultura de uma companhia é completamente voltada a resultados.
“No mundo real, a governança também serve para lidar com os problemas da melhor maneira possível e é isso que parece estar acontecendo”, diz Mazon. “Se a governança da Americanas estava dormindo antes, agora ela acordou.”
Enquanto começa a trabalhar para remediar a situação, a Americanas vai passar por dias difíceis pela frente. A CVM abriu dois processos administrativos para investigar a empresa.
Segundo Isac Costa, sócio do Warde Advogados e especialista em mercados de capitais, será preciso entender como se formou esse valor de R$ 20 bilhões que, de acordo com a empresa, é fruto de inconsistências em lançamentos contábeis na conta de fornecedores.
“As normas contábeis autorizam certa margem de discricionariedade, mas exigem que as informações fornecidas reflitam a realidade econômica das companhias”, afirma.
Os responsáveis poderão responder na CVM por falharem com suas obrigações fiduciárias e estarão sujeitos a pagar uma multa. Em casos mais graves, com a comprovação de intenção fraudulenta, eles podem ficar inabilitados a comandarem companhias de capital aberto por um prazo de até 20 anos.
Até o fim da quinta-feira, 12 de janeiro, dois processos administrativos sobre o caso Americanas estavam abertos na CVM.