As mudanças no marco regulatório do saneamento de 2020, contidas nos dois decretos assinados na primeira semana de abril pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, continuam repercutindo negativamente entre entidades e especialistas do setor.
Se havia desconfiança do setor privado quando o novo governo federal começou a acenar com “aperfeiçoamentos” à Lei 14.026, que entrou em vigor em 2020, o temor agora é de que os dois decretos (11.466/2023 e 11.467/2023, publicados em 5 de abril) possam interromper o fluxo de R$ 89 bilhões em investimentos contratados pelos operadores privados nos últimos três anos, além de atrasar a meta de universalização de acesso de água e esgoto para toda a população brasileira, prevista pelo marco para 2033.
“Um dos aspectos mais positivos do marco do saneamento foi destravar a falta de investimento no saneamento básico, que vigorava por décadas no Brasil, por oferecer segurança jurídica ao investidor, público ou privado”, diz Diogo Mac Cord, sócio-líder de infraestrutura e Mercados Regulados da EY.
“O maior risco agora é justamente o de paralisar novos investimentos porque esses dois decretos trouxeram toda a insegurança jurídica que rondava o setor antes do marco de volta”, acrescentou Mac Cord, que foi secretário especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados no governo Jair Bolsonaro, onde se destacou, principalmente, por sua atuação na implementação do novo marco do saneamento.
O governo federal diz que os decretos buscaram dar suporte para que as empresas estatais de saneamento ganhassem mais tempo e margem de manobra para se adequar às exigências contidas no marco de 2020.
Contratos irregulares
Mas ao menos duas medidas anunciadas vão além da extensão de prazo para as estatais. Uma delas dá aval para a regularização de contratos irregulares sem processo licitatório, assinados diretamente entre municípios e companhias estaduais de saneamento. A exigência de licitação para esse tipo de contrato era um dos pilares do marco regulatório.
De acordo com Percy Soares, presidente da Abcon, associação que reúne concessionárias privadas do setor de saneamento, a criação de uma alternativa ao processo de licitação ameaça o cumprimento das metas. “Processos ancorados numa ótica estatal de fazer o investimento certamente poderão afetar o ritmo da universalização”, diz Soares.
Outro alvo de crítica foi o decreto que flexibilizou os mecanismos da comprovação da capacidade econômico-financeira da prestadora estatal de serviço para realizar os investimentos necessários para atingir a meta de universalização.
De acordo com o marco, o prazo para as estatais apresentarem seu plano de investimento acabava em 31 de dezembro de 2021 – mais de um ano depois, companhias estatais de cinco estados sequer enviaram a documentação prévia. O decreto dá prazo até o ano que vem, mas a estatal não precisa apresentar captação de recurso nem operação estruturada.
Contestações
Os decretos, no entanto, já estão sendo contestados em várias frentes. O Partido Novo entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo a derrubada das medidas. Na avaliação da sigla, as normas vão desestimular a concorrência no setor de infraestrutura e atrasar a universalização do saneamento básico no país.
Já o deputado federal Fernando Monteiro (PP-PE), um dos principais aliados do presidente da Câmara, Arthur Lira, protocolou na noite de segunda-feira, 10 de abril, um projeto de decreto legislativo que susta os efeitos dos dois decretos assinados pelo presidente Lula sobre o saneamento.
“A utilização da comprovação de capacidade econômico-financeira do prestador para fins de regularização de operação irregular não tem amparo legal e diverge de diversos dispositivos da legislação”, diz o texto.
Mac Cord, da EY, porém, assegura que o maior efeito dos decretos é colocar em risco novos investimentos em saneamento. Ele lembra que, nos últimos anos, ocorreram emissões de debêntures de infraestrutura de R$ 90 bilhões em todos os setores da economia.
Antes do marco regulatório, o setor de saneamento saiu de um patamar de R$ 300 milhões ao ano em debêntures de infraestrutura, basicamente da Sabesp, para um valor dez vezes maior, de R$ 3 bilhões ao ano. O impacto foi enorme em empresas privadas que se expandiram - Iguá, Agea, BRK.
“As debêntures incentivadas ajudaram também as empresas públicas a se financiarem, porque mitigou o risco e trouxe segurança jurídica ao processo”, diz Mac Cord. “Agora, se uma empresa estatal assinar um contrato sem licitação, numa clara afronta à lei, ninguém vai te emprestar esse dinheiro, nem os bancos públicos, pois o TCU não vai autorizar”, assegura.