Nada será como antes. Quem ainda se apega a essa ideia está se autoiludindo. A revelação de nossa fragilidade como sociedade é uma descoberta poderosa e impactante. A incerteza sobre o futuro, a percepção de interdependência e corresponsabilidade, o medo que não respeita fronteiras sociais, o paradoxo do isolamento que gera mais conectividade entre as pessoas, a revalorização do que realmente importa para cada indivíduo. Enfim, são tantas descobertas que vamos nos transformar inexoravelmente.
Na prática, ainda não conhecemos a extensão dos efeitos, mas os hábitos de consumo irão mudar, se não para todos, para uma parcela importante do mercado. Até porque o entretenimento vai mudar, o turismo vai mudar, a forma de poupar vai mudar, os cuidados com a saúde irão mudar. Somente esses exemplos já impactam os setores de alimentos, saúde, turismo, transporte, show business, tecnologia, comunicação, finanças e seguros, entre tantos outros.
O fato é que levamos um sacode, enquanto indivíduos e sociedade. É como se alguém nos pegasse pelos ombros e nos chacoalhasse, chamando nossa atenção sobre o que estávamos fazendo no modo automático, sem termos noção das consequências.
Nossa primeira reação, como sociedade e integrantes de empresas, foi entender o tamanho do problema. Ainda há muita confusão a esse respeito, especialmente pela contrainformação daqueles negacionistas que insistem em não acreditar na ciência. Mas, felizmente, esses já são minoria e têm sido abafados pela maioria sensata. Essa confusão ainda provoca e provocará grande estrago, mas pôde ser em parte contida.
A resposta imediata das empresas e organizações filantrópicas e não governamentais foi a de fornecer apoio à emergência de saúde pública e de saúde financeira daqueles mais próximos aos seus círculos de relacionamento.
Estudo realizado em março e apresentado recentemente pela consultoria GlobeScan mapeou mais de 200 iniciativas corporativas ao redor do mundo em resposta à crise do coronavírus.
Ficou bastante evidente que as iniciativas se encaixavam em quatro grandes categorias:
Filantropia – doações em geral de dinheiro os suprimentos médicos ou alimentícios;
Adaptação dos negócios – iniciativas para fazer com que as atividades prosseguissem, do home office ao apoio financeiro a funcionários e clientes;
Colaboração – ações conjuntas com outras empresas ou ONGs ou agências governamentais para prover soluções necessárias para o sistema de saúde ou determinados públicos;
Valor Compartilhado – quando uma empresa colocava uma de suas capacidades (produtos, serviços, espaços físicos, etc.) em benefício da sociedade em geral e não apenas daqueles ligados diretamente aos seus negócios.
Essas quatro formas de ajudar a conter o impacto da pandemia estão presentes na reação das empresas em todas as regiões do mundo, com tempos de resposta que acompanham o alastramento do vírus no planeta. Primeiro na Ásia, depois na Europa, mais recentemente nas Américas.
Outra pesquisa produzida em março pela Edelman, o relatório especial do Trust Barometer, conduzida em 12 países, inclusive o Brasil, indica que os consumidores valorizam a ação das marcas e aponta para quatro tendências: a) Faça a sua parte; b) Não atue sozinho; c) Solucione, não fale; d) Comunique com emoção, compaixão e fatos.
Está claro, portanto, como as empresas devem reagir à pandemia, seja por realmente acreditar que têm um dever moral para com a sociedade, seja por simplesmente instinto de sobrevivência e manter a competitividade e a reputação de suas marcas. O que se coloca a seguir é: e depois da ajuda emergencial? O que fazer?
Torna-se fundamental que, após a ajuda emergencial, as empresas foquem nas transformações sistêmicas necessárias para barrar futuras crises
O mesmo estudo da GlobeScan comparou o levantamento de iniciativas das empresas em resposta ao Covid-19 aos atributos que alicerçam a liderança corporativa. Usou um modelo que é fruto de mais de 20 anos de pesquisa com especialistas sobre quais são as empresas líderes no mundo. Encontrou ações que se conectam com praticamente todos os atributos e apenas um se mostrou mais frágil: mudança sistêmica.
É totalmente compreensível que a ajuda emergencial das empresas não esteja voltada a promover mudanças sistêmicas, mas sim suprir as carências de nossos sistemas de saúde e financeiros. No entanto, se a ação dos negócios se resumir a atender às necessidades imediatas dos seus stakeholders e das comunidades em que estão inseridos, muito em breve novas crises irão emergir e mais uma vez seremos confrontados por urgências e grandes perdas.
Torna-se, portanto, fundamental que, após a ajuda emergencial, as empresas e demais organizações da sociedade civil foquem nas transformações sistêmicas necessárias para barrar futuras crises. No caso brasileiro, isso significa darmos atenção a nossa infraestrutura de saúde pública e de saneamento, sabidamente defasadas, às instituições de pesquisa e ciência, à desigualdade social e aos mecanismos de proteção dos mais necessitados. Se por um lado sobram problemas a serem resolvidos, por outro, esta crise indicou o caminho que as empresas devem percorrer.
* Álvaro Almeida é jornalista especializado em sustentabilidade. Diretor no Brasil da consultoria internacional GlobeScan, sócio-fundador da Report Sustentabilidade, agência que atua há 17 anos na inserção do tema aos negócios. É também organizador e curador da Sustainable Brands São Paulo, integra o Conselho Consultivo Global desta rede de conferências e participa da Comissão de Sustentabilidade do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC).
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