Com suas recentes declarações sobre desmatamento, o presidente Jair Bolsonaro conseguiu duas proezas – uma ruim e uma boa – que pareceriam tarefa impossível para um só mortal e em tão pouco tempo: jogou o mundo todo contra o Brasil em defesa da Amazônia e mobilizou o interesse de brasileiros dos mais diversos estratos por um tema historicamente “desinteressante”.
Ao mesmo tempo em que se apresentou na cena global como o par perfeito para Donald Trump no front de anticristos do meio ambiente, Bolsonaro ajudou involuntariamente o brasileiro médio, confortável em sua desinformação, a perceber que a Amazônia é muito mais importante do que fizeram supor nossas professoras de ciências quando nos cobraram decorar os afluentes dos seus rios.
Tem papel central na geopolítica global do clima. E, mais do que isso, a sua preservação pode ser – e será – usada como mecanismo de pressão e argumento de defesa de interesses econômicos contra o Brasil.
A ideia é simples, embora a maioria dos brasileiros certamente só tenha parado para pensar nela nas últimas semanas: importante para regulação do clima global, dada a sua invejável capacidade de sequestrar carbono lançado na atmosfera, a Amazônia passou a ser vista pelos países desenvolvidos (os mesmos que levaram o quadro climático ao crítico ponto atual) como aliada preferencial da humanidade em tempos de avanço preocupante das mudanças climáticas.
Preservada, vale muito como esteio do planeta e um campo de oportunidades para o Brasil. Desmatada, representa um risco para todos, avaliado em bilhões de dólares. Explico melhor: desmatamento aumenta emissão de CO2. Em uma conjuntura de crescente aquecimento global, aumentar emissões de CO2 funciona como repelente para investimentos.
Sem uma política ambiental consistente deve ficar muito mais difícil ao Brasil acessar recursos do Fundo Verde do Clima
Sem uma política ambiental consistente, com a floresta sob ameaça, deve ficar muito mais difícil ao Brasil acessar recursos do GCF (Green Climate Fund – Fundo Verde do Clima), mecanismo do Acordo de Paris que possibilita captação de dinheiro para mitigação junto aos países ricos, e também obter as vantagens do mercado mundial de carbono, no qual os países desenvolvidos, sem alternativas para reduzir emissões, recorrem à compra de crédito em países com muito carbono em árvore. Desmatamento pode atrapalhar ainda a exportação de produtos como etanol e, até mesmo, a madeira certificada.
A relevância estratégica da Amazônia explica, por exemplo, dois imbróglios internacionais recentes do governo brasileiro. O primeiro envolveu a paralisação do repasse de recursos do Fundo Amazônia. Alimentado por doações de Noruega (93,8%) e Alemanha (5,7%), o orçamento do Fundo, estimado em US$ 1,3 bilhão, vinha sendo destinado a diversas finalidades, entre elas o fortalecimento de estruturas de controle de desmatamento, a proteção de tribos indígenas isoladas e a aquisição de equipamentos (mangueiras, motobombas, reservatórios de água, geradores de energia e caminhões) para prevenção de incêndios na floresta, exatamente o problema que gerou recentemente a crise internacional e o desgaste do governo brasileiro.
A decisão de interromper as doações foi uma resposta de Noruega e Alemanha às tentativas do governo brasileiro de mudar as regras do jogo do Fundo Amazônia
A decisão de interromper as doações foi uma resposta de Noruega e Alemanha às tentativas do governo brasileiro de mudar as regras do jogo do Fundo Amazônia, alterando os seus mecanismos de gestão sob as alegações, não comprovadas, de que ONGs, com orientação de esquerda e, portanto, contrárias ao governo, estariam praticando irregularidades financeiras. Cerca de 60% dos recursos, vale ressaltar, vinham saindo do Fundo diretamente para a União, Estados e municípios brasileiros, sem qualquer intermediação de outras organizações. Um montante de R$ 359 milhões chegou a ser utilizado por Estados ligados à Amazônia para atividades básicas de política ambiental, como a implementação do Código Florestal.
Nessa guerra de visões de mundo distintas, sobrou farpas até para a chanceler alemã Angela Merkel, que teve que ouvir que deveria investir o dinheiro negado ao Brasil no reflorestamento do seu país, a Alemanha. Merkel, importante destacar, já havia cobrado do governo brasileiro, no último encontro do G20, em Osaka, no Japão, uma posição mais clara sobre os seus compromissos ambientais. No mesmo encontro da cúpula, Bolsonaro disse aos jornalistas que os tempos eram outros e que, ao contrário dos seus antecessores, não estava ali para ouvir sermão de líderes internacionais.
O segundo conflito começou a se desenhar também durante o encontro do grupo das 20 economias mais desenvolvidas. Para ver selado o tão desejado acordo comercial entre União Europeia e o Mercosul, que, em 20 anos, reduzirá em até 90% as taxas sobre transações entre os dois blocos, o presidente Bolsonaro aceitou a regra imposta como contrapartida por Emmanuel Macron, presidente da França, de cumprir regiamente os compromissos climáticos do Acordo de Paris.
As queimadas na Amazônia irritaram o francês a ponto de ele propor sanções econômicas ao Brasil e uma revisão de sua participação no acordo de comércio União Europeia e Mercosul. Para sorte nossa, os demais países não aderiram à tese. Macron perdeu a primeira batalha, exatamente a que lhe permitiria, além de faturar alguns bônus políticos protegendo os interesses dos agricultores franceses, pleitear a cadeira vaga de grande líder mundial. Ferido com a derrota pontual de sua tese, ou por causa das brincadeiras feitas pelo presidente brasileiro sobre sua esposa, ele quer levar o assunto para a Assembleia da ONU, que considera foro mais adequado para pressionar o Brasil.
Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) já divulgados como os que mostram um aumento de 83% no número de focos de incêndio em relação ao mesmo período (janeiro a agosto) do ano passado, ou dados a serem divulgados (novembro de 2019) que, por certo, confirmarão um aumento de 50% no desmatamento da Amazônia, devem fornecer a Macron a munição necessária para os próximos movimentos de sua guerra pessoal contra Bolsonaro. É esperar para ver.
O lado bom da crise das queimadas – se é possível dizer assim – é que ela forçou o brasileiro médio a olhar para a Amazônia
O lado bom da crise das queimadas – se é possível dizer assim – é que ela forçou o brasileiro médio, normalmente alheio às questões ambientais, a olhar para a Amazônia não mais apenas como um território longínquo, selvagem e exótico, ou uma enorme massa verde no mapa nacional. Mas como uma área estratégica, com interesse global, para um mundo ansioso por manter preservadas regiões capazes de servir como necessário contraponto à catástrofe da mudança climática anunciada pelos cientistas do clima.
Não, a Floresta Amazônica não é o pulmão do mundo, bobagem que aprendemos na escola e que foi repetida por Macron para justificar sua proposta de sanções ao Brasil – pouco mais da metade (55%) do oxigênio vem das algas marinhas que moram no fundo dos oceanos. Nem é a maior do planeta, posto ocupado pela floresta boreal. É certo, no entanto que, graças ao papel fundamental que exerce na regulação do clima global, a sua preservação interessa a todos os países. E será crescentemente mais valorizada nas mesas de negociação de acordos de comércio internacional. Não, ninguém quer tomar a Amazônia do Brasil. Não se trata, portanto, de ameaça à soberania do país. Acostumemo-nos, de uma vez por todas, à ideia de vê-la cada vez mais no centro de uma disputa de interesses econômicos e a entender que, em pé, ela vale mais do que desmatada.
*Ricardo Voltolini foi um dos primeiros consultores de sustentabilidade empresarial no Brasil e especialista em liderança com valores. Autor de nove livros, entre os quais se destaca “Conversas com Líderes Sustentáveis – O que aprender com quem fez ou está fazendo a mudança para a sustentabilidade”, publicado pela Editora Senac São Paulo. É professor de Sustentabilidade convidado da Fundação Dom Cabral e do ISAE/FGV (Curitiba)
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