O empreendedor Fabricio Pezente, fundador da fintech Traive, costumava dividir seu tempo entre Nova York e São Paulo, onde ficam os escritórios da empresa, até que as restrições impostas pela pandemia, o forçaram a se fixar por aqui.
Instalado nas imediações do coração do mercado de capitais no Brasil, ele está longe de se sentir isolado. Dali, ele comanda uma rede de conexões cada vez mais frenéticas entre Wall Street, a Avenida Faria Lima (onde estão os principais bancos de investimento do País) e cidades como Cuiabá, Sorriso, Rondonópolis, Goiânia e outros redutos do agronegócio brasileiro.
Por trás desse frenesi – termo que ele conta ter ouvido recentemente em uma mesa de negociações de um banqueiro europeu – está a percepção de que, em uma conjuntura de incerteza econômica, o resiliente e crescente agronegócio brasileiro, por muito tempo colocado na posição de patinho feio do mercado financeiro, transformou-se em um belo cisne. E, ganhando uma roupagem verde, está conquistando corações e uma profusão dólares de investidores, aqui e lá fora.
O tráfego de recursos com o carimbo verde anda intenso na ponte financeira Nova York - São Paulo – Brasil rural. “Os títulos verdes do agronegócio caíram na boca do pessoal da Faria Lima”, afirma Pezente, com evidente satisfação.
A Traive busca espaço no concorrido universo das fintechs justamente por desenvolver soluções que utilizam tecnologias como inteligência artificial para o mercado de crédito e seguro agrícolas.
No início de março, ao lado da Produzindo Certo – empresa com foco no diagnóstico e na assistência técnica para que produtores melhorem sua situação socioambiental – e da securitizadora Gaia Impacto, ela viabilizou a primeira emissão de Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRA) verdes realizada diretamente por um grupo de produtores no Brasil.
Através do CRA Verde.tech (como foi denominada a operação), sete agricultores do Centro-Oeste captaram R$ 63 milhões com os títulos, adquiridos por um único investidor americano. Antes deles, apenas grandes grupos empresariais, como o Rizoma (de Pedro Paulo Diniz) e o grupo Suzano, haviam conseguido emitir CRAs verdes.
E já há outras três operações nos mesmos moldes engatilhadas, segundo Pezente, com potencial para levantar R$ 1 bilhão até o fim deste ano. “Um único investidor acenou com R$ 700 milhões e nos pediu: ‘ajude a encontrar os produtores e fazer as análises ambientais e de risco”, diz Pezente.
Potencial verde
Recursos diretos do mercado de capitais para as lavouras são uma novidade com impacto transformador em um mercado normalmente concentrado em grandes bancos, sobretudo oficiais. A evolução das análises de risco e crédito, com a chegada das fintechs, abriu as portas para essa transformação.
O pulo do gato foi encontrar formas de embalar o agronegócio dentro dos critérios exigidos internacionalmente para que títulos emitidos por empresas do setor e até mesmo produtores pudessem ser rotulados como verdes.
“O verde monetiza algumas coisas que já estão sendo feitas de forma boa e atrai investidores que estão em busca de papéis vinculados à sustentabilidade”, diz Leisa de Souza, coordenadora de Agricultura da ONG britânica Climate Bonds Initiative (CBI) no Brasil.
Referência global no desenvolvimento dos critérios de rotulagem para os green bonds, a CBI certifica empresas para a emissão desses títulos e costuma ter um termômetro afiado para o apetite de investidores.
Há cerca de um mês, um relatório da entidade estimou em R$ 700 bilhões, até 2030, o mercado potencial para operações desse gênero, incluindo nessa conta agricultura, pecuária e os setores florestal, de energia e infraestrutura associadas ao agronegócio brasileiro.
“Fizemos uma provocação com base no pipeline de ações previstas nesses segmentos, a partir de programas como o Plano ABC (Agricultura de Baixo Carbono), Plano Nacional de Florestas, programas de biocombustíveis e as metas ambientais do Brasil em acordos internacionais”, explica Leisa.
Tem quem compre tudo isso? “Existe sim demanda, mas a gente sabe que muito dela está lá fora”, garante a coordenadora da CBI. “Temos instrumentos disponíveis e investidores com apetite.” A Nova Lei do Agro, recentemente sancionada, por exemplo, abre caminho para a emissão de CRAs em moeda estrangeira.
“A gente gostaria de ver um primeiro para sentir como o mercado reage. A BRF, por exemplo, já emitiu eurobonds verdes, mas é vista como agroindústria. Uma operação assim para produtores ainda precisa ser testada”, diz Leisa.
Demanda alta
O fato é que o agro brasileiro tem sido aprovado consecutivamente nas operações endereçadas a investidores em busca de papéis atrelados a parâmetros ESG.
No início deste ano, a Amaggi, empresa controlada pela família do ex-ministro Blairo Maggi e uma das maiores produtoras de commodities agrícolas do Brasil, ofereceu ao mercado internacional US$ 500 milhões em títulos de sustentabilidade – papéis vinculados ao financiamento de projetos de gestão ambiental relacionados a uso do solo e recursos naturais, biodiversidade, mitigação das mudanças climáticas, desenvolvimento socioeconômico e segurança alimentar – com vencimento em 2028 a uma taxa de 5,25%.
“A procura foi seis vezes superior à esperada, por isso elevamos o volume da emissão para US$ 750 milhões, pois tínhamos envergadura para acomodar a demanda”, diz Juliana de Lavor Lopes, diretora de sustentabilidade da Amaggi. Um terço da procura, segundo Juliana, foi de fundos ESG de longo prazo.
A Rizoma fez uma operação de CRA Verde, de R$ 25 milhões, concretizada em setembro passado, de forma bem mais rápida e com demanda bem maior do que o inicialmente esperado. Muitos investidores ficaram de fora. O sucesso foi creditado ao interesse de fundos de impacto em participar de operações com poder de transformar o ambiente de produção agrícola no Brasil.
“Essa modalidade de captação poderá acelerar uma verdadeira mudança de paradigma na agricultura, com um modelo de produção que alia viabilidade econômica, preservação de recursos naturais e melhoria nos indicadores ambientais”, afirmou Pedro Paulo Diniz, sócio-fundador da Rizoma, na ocasião.
Um relatório da CBI estimou em R$ 700 bilhões, até 2030, o mercado potencial para operações de green bonds no Brasil
Gigantes como BRF (500 milhões de euros), Suzano (R$ 1 bilhão em um CRA verde) e Klabin (com duas emissões de green bonds no mercado internacional desde 2017, somando US$ 1,2 bilhão) foram pioneiras e escancararam as porteiras do mercado de capitais para o agro e despertaram ainda mais a curiosidade da Faria Lima para o setor.
A operação mais recente foi feita pela Marfrig, uma das maiores empresas processadoras de proteína animal do mundo, que levantou US$ 30 milhões em um título do tipo sustainability-linked, cujos recursos serão destinados à busca de uma cadeia de fornecimento livre de desmatamento na Amazônia e no Cerrado.
Momentum agro
O apetite internacional amplia a excitação da Faria Lima, mas contrasta com uma histórica desconexão dos investidores brasileiros com assuntos afeitos ao campo. De acordo com a coordenadora da CBI ainda há pouco conhecimento, entre investidores brasileiros e também entre produtores e empresas do agronegócio, das modalidades desse mercado e de seu potencial.
“Por isso é que fazemos as estimativas: para mostrar aos dois lados que existe interesse mútuo e que eles precisam se conhecer e se entender”, afirma Leisa. A CBI lista, desde 2015, um total de US$ 6,8 bilhões em títulos verdes emitidos no Brasil relacionados ao agronegócio.
“Como é que alguém que não entende o agro vai entender os títulos verdes do agro?”, questiona Pezente, da Traive, ao mencionar um dos principais percalços que tem encontrado quando busca adesão do capital nacional a operações como a do CRA verde.
Apesar de o Brasil ser uma potência na produção de alimentos e de o agronegócio representar mais de um quarto do PIB brasileiro, bancos de investimento e family offices ainda relutam em destinar recursos para o setor por avaliarem se tratar de uma atividade com riscos mais altos que a indústria e os serviços, por exemplo.
As seguidas demonstrações de força do agronegócio – que mesmo no ano da pandemia, enquanto o PIB brasileiro caía 4,1%, conseguiu obter um crescimento de 2% e deve atingir esse ano a marca de R$ 1 trilhão em valor bruto de produção (que corresponde apenas ao resultado das propriedades rurais porteira adentro) – têm ajudado a aumentar o interesse de muita gente. “O processo de descoberta vai além do título verde. Começa pela agricultura por si só e de entender que é possível avaliar o risco de forma mais precisa”, diz Pezente.
As certificações verdes ajudam também a mudar a percepção dos investidores. Para obtê-las, empresas e produtores passam por processos de verificação e auditoria mais severos do que as tradicionais análises de crédito. Mesmo algumas operações verdes não certificadas exigem uma verificação por uma empresa independente, chamada de segunda opinião, que deve seguir critérios definidos e rígidos.
Em alguns modelos de papéis e em um mercado novo como os títulos verdes do agro, esses critérios ainda estão em discussão, mas os parâmetros básicos, definidos por organizações como a CBI, têm ajudado a nortear os investimentos. Órgãos oficiais como o Ministério da Agricultura, a CVM e o Banco Central também têm trabalhado na normatização desse mercado, dando mais segurança a emissores e investidores.
“A certificação sinaliza, principalmente para os investidores internacionais, que aquela propriedade não tem desmatamento e utiliza as melhores práticas de agricultura, por exemplo. Traz conforto para o investidor sobre o que está sendo financiado”, diz Leisa.
Em parceria com o banco Credit Suisse, a CBI trabalha para definir os princípios para reger os chamados títulos de transição – aqueles em que empresas buscam recursos para financiar adaptações em suas operações para migrarem para um modelo mais sustentável e de baixo carbono, como foi o caso da Marfrig. “Esses títulos precisam estar atrelados a compromissos e estratégias de ação, com planos bem definidos para cada etapa”, afirma Leisa.
Outro ponto ainda não muito claro para uma boa parte dos donos do dinheiro que avaliam entrar na onda dos investimentos verdes é a remuneração. Quem pensa apenas em rentabilidade pode ainda não estar pronto para essa nova era ESG nas finanças, em que quem coloca seu capital em jogo deve aceitar receber um pouco menos em retorno, pelo menos em termos monetários, em troca de estar contribuindo para um ambiente de negócios mais responsável e justo.
É esse “prêmio verde” que permite aos produtores emissores de títulos ter acesso a um recurso mais barato para que ele possa desenvolver sua produção de modo mais sustentável, cumprindo metas socioambientais mais ambiciosas e mantendo a saúde de seu negócio.
“Um dos maiores benefícios do CRA verde é a valorização dos ativos ambientais e do trabalho de preservação feito pelos produtores através da obtenção de recursos e taxas diferenciadas, o que não acontece na comercialização de sua produção ou mesmo nos modelos tradicionais de crédito rural”, afirma Aline Locks, CEO da Produzindo Certo.
Em mercados mais maduros, sobretudo o europeu, e em grandes gestoras, como BlackRock e Aviva, duas das maiores do mundo, essa consciência já está mais disseminada e explícita nas regras de governança.
Assim, com o frenesi verde externo ecoando por aqui, parece questão de tempo para que a Faria Lima comece a falar a mesma língua de Wall Street e se volte com mais interesse para o agronegócio sustentável.
Segundo Pezente, o setor está próximo de viver o que o mercado financeiro chama de momentum, aquele instante em que os operadores de mercado se sentem à vontade para aplicar seus recursos em um determinado ativo e, mesmo que o investimento não dê o retorno esperado, não será questionado.
“Ninguém é demitido por investir na Amazon, por exemplo”, compara. Racionalmente, investir no agro brasileiro, que se sustenta e sustenta o País, tem mercado garantido mundo afora e potencial para avançar com digitalização, é uma opção óbvia. “O momentum é algo menos racional e, agora, ele é agrícola”, diz Pezente.