No começo dos anos 2000, a indústria de mídia começou a sentir os efeitos da internet. A receita publicitária caiu, os leitores se reduziram e os recursos não migraram na mesma intensidade (e nem com os mesmos valores) para as plataformas digitais.
Foi um tempo difícil para todo mundo e ninguém parecia saber exatamente como enfrentar os desafios das novas mídias. Nessa época, o centenário The New York Times viveu um de seus momentos mais desafiadores.
Entre novembro de 2003 e novembro de 2008, as ações do jornal despencaram 89,77%. No momento mais crítico, os papéis foram negociados a US$ 4,97, um dos valores mais baixos da história da empresa, que abriu seu capital em 1973.
Foi quando o bilionário mexicano Carlos Slim, dono da empresa de telefonia América Móvil, que controla a Claro no Brasil, saiu em resgate do tradicional jornal. Primeiro, ele comprou uma fatia de 6,4% em 2008. Um ano depois, injetou mais US$ 250 milhões por meio de um empréstimo com garantias (exercido em 2015, quando ficou com uma participação de 17%).
Quase dez anos depois, Slim, dono de uma fortuna estimada em mais de US$ 60 bilhões, reduziu sua posição no jornal. E ganhou muito, muito dinheiro com isso. Em dezembro de 2017, ele cortou pela metade sua participação, obtendo um lucro de 272%. Na ocasião, as ações valiam US$ 18,60. Quando comprou os papéis, eles estavam na faixa de US$ 5. Hoje, estão cotados acima de US$ 32.
As ações, é verdade, ainda estão longe do pico de 2003, quando quase chegaram ao patamar de US$ 50. Mas o The New York Times vive atualmente uma fase completamente diferente, sinalizando que é possível fazer uma transição bem-sucedida do formato impresso para o digital.
"Agora, os editores discutem coberturas ao vivo, mensagens de impulsionamento e usam as métricas online para entender os leitores e saber como alcançá-los", disse ao NeoFeed Kimberly Perry, editora sênior de transformação digital do jornal.
Os primeiros sinais dessa transição estão começando a aparecer. Em 2019, o tradicional jornal nova iorquino fechou seu balanço com uma receita online de US$ 800 milhões, o que representa 45% de seu faturamento de US$ 1,8 bilhão. De 2017 para 2018, o Times, como é conhecido nos EUA, aumentou em 18% sua receita digital. Já de 2018 para o ano passado, esse acréscimo foi de 99,5%.
O número de assinantes de notícias online também subiu, chegando a 3,4 milhões de leitores que pagam para acessar o seu conteúdo, seis vezes a mais do que os leitores do impresso. Somados, são 5 milhões de assinantes.
"Os editores discutem coberturas ao vivo, mensagens de impulsionamento e usam as métricas online para entender os leitores e saber como alcançá-los", diz Kimberly Perry.
Para virar a página e o jogo, o Times teve que se reinventar como empresa e como jornal, investindo em novos modelos de negócios e notícias. Foi em 2014 que as coisas começaram a ficar mais claras. Naquele ano, o jornal lançou o seu primeiro Relatório de Inovação, apontado como o "marco" da guinada digital da companhia.
Além de metas diretas, como conquistar 10 milhões de assinantes pagos até 2025 e gerar US$ 800 milhões de receita até dezembro de 2020, objetivo já alcançado, a partir daquele momento outra inteligência entrou em cena.
O The New York Times passou a analisar dados para converter em assinaturas. Em entrevista à revista de tecnologia CIO, Kinsey Wilson, então responsável pela área de produto e inovação da empresa, disse que parte do sucesso do jornal estava ligado a combinação de duas coisas.
"O jornal modernizou o ambiente de dados e sofisticou suas análises para entender como a audiência chegava ao ponto de concordar com uma assinatura paga", disse Wilson.
A revitalização de toda a equipe de TI, a capacidade de testar de forma ágil diferentes propostas e a integração de áreas antes distintas, como engenharia e design, foram os outros fatores creditados por Wilson para que o Times aumentasse sua base de assinantes digitais.
No fim, é tudo sobre pessoas
Mas tão importante quanto a mudança dos processos tecnológicas foi a mudança cultural. Em especial, dos jornalistas. "Temos sorte de contar com uma redação forte, com cerca de 1,7 mil pessoas, o que faz com que a inovação aconteça em diferentes lugares", diz Perry.
Bacharel em jornalismo pela Universidade do Alasca Anchorage, a editora de transformação digital sabe que, muitas vezes, as perguntas são mais importantes do que as respostas em si. E foi assim que a transformação digital do jornal foi desenhada.
"Começamos com o básico: o que os repórteres e editores já estão fazendo digitalmente? O que esperar deles? Descobrimos que muitos não estavam usando nosso sistema de gerenciamento de conteúdo e que boa parte do 'trabalho digital' era considerado uma responsabilidade de outra pessoa", afirma Perry.
Segundo ela, a equipe não se sentia dona do conteúdo digital e foi preciso treinar a redação para dar-lhes as ferramentas e recursos para que cada um se sentisse seguro o bastante para usar suas habilidades jornalísticas em múltiplas plataformas, engajando a audiência em qualquer canal.
Em 2019, o tradicional jornal nova iorquino fechou seu balanço com uma receita online de US$ 800 milhões, o que representa 45% de seu faturamento de US$ 1,8 bilhão
Essa virada cultural, porém, não foi livre de dores. "As obrigações e tradições impressas – que são uma parte tão poderosa da história, cultura e fluxo de trabalho do The New York Times – foram desafiadoras”, diz Perry. “Além disso, a tecnologia está em constante mudança, então estamos sempre tentando novos formatos de histórias, ferramentas e fluxogramas.”
Esses não foram os únicos componentes da virada digital do The New York Times. Em 2011, o jornal foi um dos primeiros a apostar no paywall, como é chamado o “muro” que impede o acesso dos internautas depois de lerem uma quantidade pré-determinada de notícias. Ao longo do tempo, ele foi sendo aprimorado, refinando essa barreira e aumentando a conversão de novos leitores pagos.
Além disso, os jornalistas passaram a produzir novos conteúdos, além do tradicional texto na versão impressa e online. Novos formatos começaram a ser testados, como vídeos e podcasts.
"Os repórteres enviam suas apurações diretamente para o sistema de gerenciamento de conteúdo, criando narrativas nativas digitais e promovendo seu próprio trabalho, compartilhando o resultado online, interagindo com leitores e se empolgando com a possibilidade de dividir tudo isso em novas plataformas, como podcast e vídeos", afirma Perry.
Tendência global?
Paralelo aos esforços internos, o modelo de assinaturas digitais começou a ganhar adeptos – não necessariamente no negócio de notícias. Empresas como Spotify e Netflix, por exemplo, ajudaram a desbravar esse ambiente.
O Facebook também mudou sua postura e criou um serviço que remunera os produtores de conteúdo nos Estados Unidos. O aumento da confiança fez ainda com que Apple e Amazon passassem a se interessar também por notícias
Um estudo mostra que há 19,5 milhões de assinantes que pagam por pelo menos um produto digital de notícia, o dobro do que havia em 2018.
Esses fatos explicam, em parte, o "boom" de assinatura nos últimos dois anos. Um estudo liderado pela consultoria CeleraOne e a Fipp (Federação Internacional de Publishers de Jornais), mostra que há 19,5 milhões de assinantes que pagam por pelo menos um produto digital de notícia, o dobro do que havia em 2018.
Quem está na frente em número de assinantes, segundo essa pesquisa, é o The New York Times. O jornal econômico The Wall Street Journal e The Washington Post, do dono da Amazon, Jeff Bezos, ficam na segunda e terceira posição, respectivamente. Os ingleses Financial Times e The Guardian completam o ranking.
No Brasil, essa tendência também está acontecendo. Dados do Instituto Verificador de Circulação (IVC) mostram que os nove grandes jornais brasileiros estão perdendo assinantes no impresso, mas ganhando em suas versões digitais.
A Folha de S. Paulo, por exemplo, contava com 159 mil assinantes digitais em dezembro de 2014. Agora, o número subiu para 247,4 mil, uma alta de 56%. O Globo registrou crescimento de 57% no período. Estadão e Valor aumentaram os assinantes de suas versões digitais em 101% e 404%, respectivamente.
O The New York Times tem um slogan que sobrevive há mais de um século e é considerado as sete palavras mais famosas do jornalismo: “All the news that´s fit to print” (Todas as notícias que merecem ser impressas).
Na época digital, esse tradicional slogan está sendo adaptado para “all the news that´s fit to post”. Em uma tradução livre: todas as notícias que merecem ser publicadas. E na plataforma que for mais conveniente ao leitor.
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