O ano de 2023 já não prometia ser fácil para as empresas. Com sinais de que a economia iria desacelerar, como ficou evidente no quarto trimestre, e a inflação demoraria a ceder, as companhias se ajustavam para atravessar um período adverso, mas sem grandes percalços.
Em 11 de janeiro, no entanto, a divulgação de “inconsistências contábeis” de R$ 20 bilhões pela Americanas colocou uma camada pesada de dificuldades sobre as empresas. A situação travou o mercado de emissão de dívidas e trouxe à tona algo que não piscava tão intensamente no radar de Ricardo Carvalho, diretor-executivo de corporates da Fitch Ratings, e sua equipe: risco de crédito.
“Estamos com a luz amarela ligada, olhando a situação com muito mais preocupação do que em janeiro”, diz Carvalho, ao NeoFeed. “Víamos um cenário econômico mais fraco, mas o fluxo de caixa fluía bem e as empresas conseguiam rolar suas dívidas. Mas, após Americanas, essa realidade não existe mais.”
Liquidez é um aspecto chave no momento em que a atividade econômica prejudica a geração de caixa. Com o mercado travado após o caso Americanas, a grande dúvida é se as companhias conseguirão se refinanciar e a que custo.
Segundo Carvalho, existe um volume grande de dívida marcado para vencer em 2023 e uma quantidade ainda maior em 2024. “Vamos ver empresas buscando posições maiores em dívida bancária, porque o mercado não vai dar liquidez a todo mundo. E dívida bancária pressupõe em spreads maiores, mais garantias, prazos mais curtos”, afirma.
Com o mercado dificultando o refinanciamento, a Fitch começou a rever suas análises. Apesar de 88% dos ratings da escala nacional terem perspectiva estável, a agência realizou nos dois primeiros meses do ano a mesma quantidade de rebaixamentos do que fez no acumulado de 2022. Até o momento, realizou nove downgrades de empresas na escala nacional.
Segundo Carvalho, o varejo é um dos setores que mais preocupam, considerando sua forte correlação com a economia brasileira. Outro ponto de atenção são empresas que estão com um índice de alavancagem superior a três vezes, além de companhias médias e aquelas com qualidade de crédito mais baixa.
“As empresas 'AAA' vão continuar emitindo, assim como as empresas 'AA' vão voltar a emitir, mas pagando bem mais caro”, afirma. “As empresas em 'A' ou abaixo com certeza terão mais desafio para acessar o mercado.”
Carvalho não quis comentar sobre por que não foi possível detectar o caso Americanas. Quando rebaixou o rating da varejista de “C(bra)” para “D(bra)”, a Fitch informou que a companhia era muito pouco transparente com os dados sobre “risco sacado”, fator que provocou toda a crise.
Acompanhe os principais trechos da entrevista ao NeoFeed:
Qual é a situação atual do mercado de emissão de dívidas? Está mais complicado para emitir?
O mercado de emissão local vive um cenário bastante desafiador, como há muito tempo não se via. Ao longo dos últimos anos, o Brasil tem visto uma expansão da base de investidores, com os fundos buscando mais risco privado, com os juros abaixo de 5%. Isso é muito positivo. Em dois anos, a base de investidores cresceu, os tíquetes aumentaram, com empresas emitindo R$ 1 bilhão, R$ 2 bilhões em dívida, os prazos ficaram maiores e os custos ficaram interessantes para empresas com melhor qualidade de crédito. Esperávamos que o mercado poderia ter dado uma estreitada em 2022, por conta das eleições, mas isso não aconteceu. O mercado até tinha boas perspectivas para 2023, mas aí veio o caso Americanas e a vida mudou.
Quais foram as consequências do caso Americanas para o mercado de dívida?
Após o evento Americanas, o mercado simplesmente travou. Essa é a palavra, travar. A gente tinha diversas emissões prestes a acontecer, companhias que tinham mandatado debêntures e todas elas simplesmente colocaram as operações on hold.
Quantas operações estavam para ser feitas?
Era um pipeline entre R$ 6 bilhões e R$ 10 bilhões, dependendo do período em que se olha. Começaram a sair algumas operações. A primeira foi da Rede D’Or, que é um crédito bastante forte. Mas muitas operações estão ficando encarteiradas. Hoje, o mercado está fortemente restrito na colocação de operações. O investidor está muito retraído e continuará retraído até que tenha uma sinalização mais clara do cenário daqui para frente.
Em relação a Americanas, era impossível antever a situação dela? Não tinha nenhum sinal de dificuldade?
O que a gente tinha para falar sobre Americanas está no nosso press release, ele é claro em relação à nossa visão, o que a gente viu, o que a gente acha (no press release divulgado pela Fitch no dia 19 de janeiro, a agência afirma que por diversos anos a empresa não divulgou de forma adequada a questão dos riscos contábeis, algo altamente relevante para os ratings, levantando questões sobre os controles financeiros da companhia).
De que forma o momento econômico está afetando a situação?
A percepção é de juros altos por um período muito longo. Isso machuca a atividade econômica, leva a spreads mais altos. É difícil olhar uma atividade, um setor, que aguente esse nível de taxa de juros. E as empresas terão resultados abaixo do esperado, em termos de caixa, demanda e geração de receita. O primeiro trimestre deve ser fraco, porque não tem nenhuma variável de atividade econômica que indique algum tipo de recuperação. Junto a isso tem pressões inflacionárias. As companhias começaram a recuperar rentabilidade, mas quando a atividade começou a cair, ficou mais difícil buscar uma compensação da inflação passada. Se a inflação permanecer alta, é muito difícil repassar aos preços finais. Ou você está num segmento que permite pass trough, como setor de energia e gás. E, mesmo assim, existe um alto risco de inadimplência.
"Após o evento Americanas, o mercado simplesmente travou. Essa é a palavra, travar"
O cenário-base mudou muito por conta da perspectiva econômica?
O cenário não está tão diferente ao que vimos no final de 2022. A diferença é que a recuperação será mais lenta do que imaginávamos. Mas o evento chave, crítico, que coloca nossa visão do que tínhamos no início do ano, é que passamos a ter um risco de liquidez, de refinanciamento, que não existia até aquele momento. O mercado era muito líquido para empresas com muito boa qualidade de crédito e também para empresas de qualidade média de crédito, até para algumas mais arriscadas. E quando tem um cenário desses, em que a liquidez é chave quando se olha variáveis de risco de rating, a questão de rebaixamento de notas é potencializada, porque se passa a enxergar maiores dificuldades de refinanciamento. Hoje temos um grau maior de incerteza sobre qual é a habilidade das companhias de acessar o mercado de capitais e de crédito bancário. É um risco que não estava nos ratings.
Qual o tamanho da preocupação da Fitch com este cenário, de economia fraca e seca de liquidez?
Tudo isso nos fez ligar a luz amarela, estamos olhando a situação muito de perto. Porque uma coisa é ter uma geração de caixa um pouco mais fraca, mexendo nos índices de alavancagem, mas a empresa conseguindo rolar suas dívidas. A hora que você tem um cenário de juros nessa magnitude, com risco de prêmio subindo e escassez de liquidez, você passa a ter problemas sérios. Qualquer empresa com um índice de alavancagem maior que três vezes vai sentir fortemente o impacto dos juros e os prêmios de riscos elevados. E as empresas com um cronograma de dívida mais apertado também vão sentir as consequências. Por isso, estamos com a luz amarela ligada, olhando a situação com muito mais preocupação do que tínhamos em janeiro, quando víamos um cenário econômico mais fraco, mas o fluxo de caixa vinha fluindo bem, as empresas conseguiam rolar suas dívidas. Após Americanas, essa realidade não existe mais.
Como está o cronograma de vencimento de dívidas? Muita coisa está prevista para vencer em 2023?
No Brasil, as emissões não possuem vencimentos muito longos. No segundo ano, a empresa já está pagando uma perna de uma debênture de quatro, cinco anos. A cada dois, três anos precisa ter um ciclo de rolagem muito forte. E como se emitiu muito entre 2020 e 2022, tem essa situação chegando. Este ano não é o ano crítico quando se olha o cronograma de dívida, mas 2024 é um ano com muita dívida vencendo. É preciso que a liquidez volte nos próximos meses para minimizar o risco. Não é que não exista risco em 2023, mas o volume que vai vencer em 2024 é muito maior. Para empresas com dívida estrangeira, você tem um volume muito baixo de bonds vencendo em 2023, mas um volume considerável em 2024. Os riscos são muito menores, porque são empresas exportadoras, com grau de investimento, com boa qualidade de crédito.
Já tinha visto algo parecido?
Ao longo dos últimos cinco anos, eu não lembro. Se voltar para 2015, período de Dilma, teve algo muito parecido, com juros altos, spreads parecidos. Mas você tinha ali uma destruição de atividade econômica que não é o que vemos agora. O PIB caiu 7% naquela época. Não é o mesmo cenário, mas em termos de liquidez temos preocupações. Taxa de juros é um fator altamente restritivo quando você tem atividade que depende de demanda local, com correlação forte com a atividade econômica. Nesse nível de juros, o que as companhias vão entregar de despesa financeira em 2023 é valor muito substancial, que vai machucar os fluxos de caixa.
Esta questão da correlação econômica é o que explica por que varejistas como Tok&Stok e Marisa estão com dificuldades?
O varejo é altamente correlacionado com as variáveis econômicas. É muito difícil você falar em varejo andando bem com taxas de juros acima de 10% ao ano. E o varejo é uma atividade que demanda muito capital de giro. Se as companhias não conseguem acessar recursos com custo razoável, fica muito difícil financiar uma atividade com o CDI no nível que está. Esse cenário atual, para o varejo, é difícil, porque implica aumentar o ciclo de caixa, porque tem que dar mais prazo ao cliente. Não é um cenário bom para ciclo de caixa, o que implica uma maior necessidade de capital de giro. E como fazer isso pagando CDI mais 3%, 4% e 5%? E tem varejistas que operam com financeiras, e os juros altos chegam na financeira, com a inadimplência subindo, capital mais caro. A gente olha o varejo com muita preocupação, por conta dessas características.
"Este ano não é o ano crítico quando se olha o cronograma de dívida, mas 2024 é um ano com muita dívida vencendo"
Qual o cenário daqui para frente?
A preocupação imediata, para quem tem o perfil de amortização de dívida concentrado em 2023 e 2024, é saber o que a empresa fará se o mercado não der liquidez. Qual o plano B ou C? E é difícil entender esses planos no momento em que o investidor não quer assumir uma postura de risco maior. O mais provável é que o mercado retorne de forma gradual, com o investidor buscando empresas com qualidade de crédito maior. Só que o mercado não é feito de empresas maiores, de muita qualidade de crédito. Essas são a minoria. As empresas no meio do ranking, elas têm um desafio grande.
A Fitch vê alguma sinalização da liquidez voltando ao mercado? Os investidores estão conseguindo deixar o caso Americanas de lado?
Não dá para o mercado simplesmente congelar, porque aí entramos num cenário muito crítico. A gente deve começar a olhar as empresas no topo dos ratings emitindo, talvez com prazos menores e custos maiores. Depois vem uma segunda onda, de empresas com qualidade de crédito um pouco mais baixa. O problema maior vai ser as empresas com risco de qualidade média. A régua para empréstimos subiu e a liquidez não está no mercado. Ela deve voltar ao mercado com a régua lá em cima, porque não faz sentido um prolongamento acentuado desta situação, porque é ruim para as companhias, bancos e investidores.
O número de companhias em situação crítica é muito alto?
O mercado brasileiro, até pouco tempo atrás, era um mercado em que inicialmente só tomavam empréstimos empresas com rating AA, mas ele foi abrindo sua base, passando a aceitar empresas com nota A. As empresas AAA vão continuar emitindo, não faz sentido achar que essas empresas não vão emitir. Também acho que as empresas AA vão voltar a emitir, mas pagando bem mais caro e as empresas com nota A terão o desafio de buscar capital. Neste cenário, as empresas em A ou abaixo com certeza terão mais desafio para acessar o mercado de capitais.
Qual será as consequências para as companhias?
Vamos ter descumprimento de covenants, por uma razão simples. Com a dívida corrigindo acima da geração de caixa, as empresas que tinham alavancagem alta vão ver essa relação subir mais. Isso não está vinculado a Americanas, mas ao cenário econômico e a taxa de juros. O segundo ponto é que o desafio de rolagem ficou muito maior, o que implica em riscos consideráveis que não estavam dentro dos ratings.
O que isso significa?
Toda vez que traz risco de liquidez nos ratings, acende a luz amarela, porque o risco de liquidez faz uma empresa quebrar, reestruturar. Se a alavancagem sair de 4 vezes para 4,5 vezes, não é isso que vai provocar uma reestruturação. Ela sofrerá um rebaixamento de rating. Então, vamos ver empresas buscando posições maiores em dívida bancária, porque o mercado não vai dar liquidez a todo mundo que emitiu nos últimos três anos. Dívida bancária pressupõe em spreads maiores, mais garantias, prazos mais curtos. Mas, neste cenário, o acesso a capital é mais importante do que a questão dos custos, porque quando não se tem acesso a capital, a empresa corre riscos.
Qual a preocupação da Fitch com defaults?
Achamos que vai subir, porque a performance das empresas está fraca, não vemos sinais de melhora. Segundo, o endividamento está subindo muito, por conta do custo da dívida, sem contrapartida de geração de caixa, e principalmente pela questão da liquidez. Quanto mais se alongar este cenário, maior será o nível de empresas se reestruturando. Quem está reestruturando não são as que tem ratings AAA.