Ela anseia o futuro justamente por entender o passado: a historiadora americana Margaret O'Mara investiu os últimos cinco anos de sua vida pesquisando sobre as raízes do Vale do Silício e acredita que a região mais tecnológica do mundo está à beira de um novo ponto de virada.

Explicando todos os seus argumentos em seu terceiro e mais recente livro publicado – "The Code" –, a autora prevê que as eleições presidenciais do ano que vem e as discussões sobre privacidade e antitruste tragam novos rumos para as empresas globais baseadas na Califórnia.

PhD em história pela Universidade da Pensilvânia, Margaret trabalhou na Casa Branca durante a gestão de Bill Clinton e, como professora, atuou em Stanford e na Universidade de Washington, onde ainda leciona.

Ela, que tem textos publicados no The New York Times, Los Angeles Times, The Washington Post, Newsweek e outros grandes veículos de mídia, conversou com exclusividade ao NeoFeed e falou sobre meritocracia, machismo e a política do Vale do Silício.

Veja, a seguir, a entrevista completa.

Você poderia contextualizar um pouco o seu novo livro The Code? Por que escrever sobre a história do Vale do Silício?
Meu interesse pela história da tecnologia não é novo e nem novidade. Pesquiso sobre o assunto há 20 anos e, talvez por isso, receba tantas perguntas sobre o tema. Comecei a notar, então, que certas questões se repetiam: é possível criar um novo Vale do Silício? Esse polo poderia ter surgido em outra região dos EUA? Perguntas interessantes para as quais eu não tinha ainda uma resposta. Foi esse o ponto de partida do livro, porque eu queria entender a "fórmula mágica" da região que abriga as cinco empresas das quais ninguém consegue escapar.

Ninguém consegue escapar…?
Não é possível escapar de Apple, Microsoft, Amazon, Google e Facebook. Você pode não ter uma conta na rede social, mas talvez use o WhatsApp. Ao pedir um Uber, por exemplo, você está utilizando o Amazon Web Service sem nem saber. Virtualmente, estamos todos consumindo e dependendo dessas empresas. E a história delas é também, de certa maneira, a história dos EUA. É preciso saber o que veio antes para explicar o agora e entender o que acontece depois.

"Quebrar as Big Tech, como propõem alguns, acho que não. Mas as regulamentações estão ganhando força em diferentes setores da sociedade"

Então antes de falar sobre o passado, uma pergunta sobre o futuro: o que vem pela frente no Vale do Silício?
Acho que estamos num ponto de virada. Se você observar o que tem acontecido em Washington, com as pautas de regulamentação, sabe que algo vai mudar. Quebrar as Big Tech, como propõem alguns, acho que não. Mas as regulamentações estão ganhando força em diferentes setores da sociedade. A Califórnia mesmo tem discutido sua legislação e, dependendo do que aconteça nos próximos anos, o cenário vai mudar completamente.

Pode ser o fim do Vale do Silício?
A indústria tecnológica cria a próxima geração de sucesso, numa espécie de "autorregeneração". Se as investigações e pautas antitruste surtirem algum resultado mais austero, seja limitando as companhias ou suas ações, pode ser que tudo mude. Estou acompanhando o desenrolar dessa história com grande interesse.

Acha que pode existir uma outra região no mundo com esse mesmo potencial? O que aconteceu para que o Vale do Silício se tornasse o que é hoje?
Investimento e decisões. Depois da Segunda Guerra Mundial e Guerra Fria, lá por meados dos anos 1950, os Estados Unidos passaram, pela primeira vez, a investir fortemente em em engenharia e áreas afins. As universidades passaram a ter fundos e a educação superior se transformou.

Foi uma decisão de priorizar a educação, então?
Não foi algo assim tão nobre, porque o pano de fundo desses investimentos eram militares. O cenário geopolítico da época colaborou para isso. O governo passou a comprar e investir em computadores e em tecnologia, mas por motivações bélicas.

"A gente sabe, hoje, que essa hiperconexão tem seu preço, mas o otimismo da troca está nas raízes do Vale do Silício"

E quando foi que isso mudou?
Em 1960, esses jovens escolarizados, passaram a questionar a posse da tecnologia por parte do governo. Todo acesso passava, de alguma maneira, pelo controle estatal. Ali começou a ideia do computador pessoal como uma forma de revolução social, para que as pessoas pudessem conversar umas com as outras sem interferência do Estado. A gente sabe, hoje, que essa hiperconexão tem seu preço, mas o otimismo da troca está nas raízes do Vale do Silício.

Mas o Vale do Silício não poderia ter surgido em outro lugar dos EUA, talvez um mais perto da capital?
Eu acredito que não, porque a Califórnia era o Estado que mais recebia dinheiro do fundo militar e soube investir bem em educação, construção e estrutura. Prédios, rodovias, cabeamento… tudo isso conta. Além disso, a Califórnia era o único Estado americano a permitir que um funcionário aceitasse imediatamente uma oferta na empresa concorrente sem que sua migração fosse passível de processo. Isso permitiu um fluxo de talentos inédito e, no final das contas, os profissionais são os maiores e mais caros recursos de uma companhia. Também é preciso destacar que o clima da Califórnia colaborou para o sucesso da região, bem como a universidade de Stanford, que sempre foi um hub para a indústria eletrônica.

Teve alguma descoberta que a surpreendeu ao longo da pesquisa para o livro?
Acho que muita gente pensa em concorrência, quando eu descobri mais cooperação. Quando falamos do Vale do Silício, podemos pensar que cidades como Boston e Seattle competiam pelo posto de pólo tecnológico, mas era uma relação simbiótica. Houve muita troca positiva entre esses centros, e eu falo aqui de networking, pesquisa, investimento e talentos.

Questões como o machismo, por exemplo, não causaram surpresa?
Engraçado, enquanto eu escrevia o livro começaram a falar pela primeira vez sobre o machismo no e do Vale do Silício. É fácil de entender e contextualizar a falta de diversidade, porque tudo ali acontecia na base da indicação e do contato. Venture capital é um negócio muito arriscado, e uma forma de minimizar os riscos é apostando em algo ou alguém conhecido e que seja fácil de prever. Então acabavam apostando sempre nos mesmos semelhantes. Via de regra, os engenheiros eram todos homens, brancos e héteros. Ao ganhar dinheiro, eles adquiriam o poder de tomar as decisões e, de novo, investiam em algo parecido. Os vencedores da geração passada escolhem os vencedores da próxima geração.

"Um dos problemas que o Vale enfrenta hoje é consequência, justamente, da falta de diversidade"

E isso não pode mudar?
Acho que está mudando, mas vagarosamente. Um dos problemas que o Vale enfrenta hoje é consequência, justamente, da falta de diversidade. Porque não há pluralidade na equipe, eles não sabem em quais produtos apostar, por exemplo. Além disso, outras pessoas, com outros perfis, começaram a ganhar dinheiro e apoiar classes historicamente excluídas do Vale. Está mudando, não na velocidade desejada.

Não existe meritocracia no Vale do Silício, portanto?
Acho que, no começo, era uma terra com oportunidade para homens brancos de origem humilde: se você trabalhasse duro, conseguiria ganhar algum dinheiro na região. Mas a grande verdade é que esse discurso de meritocracia é muito limitado. Dizem que se você for bom, terá uma chance por lá, e que a predominância masculina se dá porque "mulher não liga para tecnologia" – e isso não é verdade. Mulheres tiveram de lutar pelo direito de estudar e, certas áreas, como essa da tecnologia, foram mais resistentes. O contexto explica.

O empreendedorismo não poderia ter mudado esse cenário e trazido mais diversidade?
A cultura do empreendedorismo é, também, exclusiva. Quem pode se dar ao luxo de viver à base de macarrão instantâneo, trabalhando 18 horas por dia? E quem tem que mandar dinheiro para a família todo mês, ou quem tem filhos para criar, como fica? Não são todos que contam com a sorte do suporte familiar para garantir moradia e salário numa região cara como é a Califórnia. Empreendedorismo tem muito privilégio. Não por isso vemos que boa parte dos empreendedores de sucesso são garotos de 20 e poucos anos, que topam passar dias comendo mal, dormindo mal e sem tomar banho, sacrificando tudo pelo negócio. E é mentira achar que, quem não aceita esse esquema, não está interessado em empreender. Alguns não podem e outros simplesmente não querem essa rotina.

Como esse pensamento moldou a cultura americana?
Passamos a colocar toda a pressão no indivíduo: se você for inteligente e trabalhar pesado, você está feito. Isso ainda ecoa pelo país, mesmo não sendo verdade. Acho que deixamos de lado o pensamento do "vamos juntos". Passamos a defender menos governo e mais iniciativa privada, mas não podemos ter um mundo de pessoas individualistas querendo "chegar lá" sozinhas – porque é preciso uma grande estrutura para atravessar a jornada.

"Apple e Microsoft, que já foram considerados os bad boys do setor, hoje parecem os adultos da sala, defendendo um diálogo mais saudável com Washington"

Por falar em governo, o Vale do Silício tem links direto com Washignton DC. Você comenta que o pólo tecnológico americano passou de republicano para democrata...
Os partidos mudaram muito ao longo dos anos também. No começo, o Vale era tomado por empresários que tinham o típico pensamento de "menos impostos" defendido pelos republicanos. Mas eles nunca foram conservadores nos costumes, tanto que não davam muita bola para Ronald Regan. Paralelo a isso, uma nova geração de democratas, com um novo discurso, passou a se aproximar do setor de tecnologia. Bill Clinton e Barack Obama, por exemplo, eram abertamente tech friendly e adotaram políticas importantes para o setor, como diminuição dos impostos e flexibilização das regras migratórias para a mão-de-obra especializada.

E essa aproximação do Vale e de Washington é boa?
Muita gente no Vale do Silício ainda quer distância da capital e da política, mas as coisas não se separam tanto. É preciso discutir as regras e o poder dessas empresas. O lobby das Big Tech, em DC, é enorme. Da mesma forma, muita gente que passou pela Casa Branca hoje trabalha no Vale. O que é curioso nisso tudo é que Apple e Microsoft, que já foram considerado os bad boys do setor, hoje parecem os adultos da sala, defendendo um diálogo mais saudável com Washington.

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