Em meados de março, a Covid-19 interrompeu uma imensa fila que se formava na B3. Até uma semana antes do início da escalada do vírus, 26 empresas já haviam registrado seus pedidos de abertura de capital na bolsa brasileira, apontando para um provável recorde de ofertas públicas iniciais (IPO) no ano.
Desde então, apenas a Estapar e a canadense Aura Minerals decidiram se arriscar nesse caminho. Nas últimas semanas, porém, o mercado vem dando sinais de reaquecimento. BTG Pactual, Via Varejo e Centauro, por exemplo, captaram R$ 2,65 bilhões, R$ 4,45 bilhões e R$ 900 milhões, respectivamente, em seus follow ons.
Entretanto, outro segmento do varejo parece mais disposto a decretar, de vez, o fim da quarentena no mercado brasileiro de capitais: as grandes redes de farmácias, que estão dando um passo à frente para testar o apetite dos investidores no balcão da B3.
Na quarta-feira, 8 de julho, o grupo Profarma, já listado na bolsa brasileira, protocolou o prospecto preliminar para o IPO da d1000, sua divisão de varejo, que compreende as bandeiras Farmalife, Drogasmil, Tamoio e Rosário. Duas semanas antes, a Pague Menos tinha seguido essa trilha. A dose extra veio nesse intervalo, com o follow on e a migração para o Novo Mercado da gaúcha Panvel.
Ainda em fase de definições, as três ofertas somada têm a expectativa de levantar cerca de R$ 2,7 bilhões. Caso sejam concluídas, a cifra mais polpuda envolve o IPO da Pague Menos, previsto para ser realizado até o fim de agosto e com a estimativa inicial de captar até R$ 1,5 bilhão.
Procuradas, as três empresas não se pronunciaram. Mas as fontes consultadas pelo NeoFeed têm na ponta da língua o motivo para essa movimentação. “A partir de 2015, o setor foi o único a navegar bem na crise”, diz Alberto Serrentino, sócio da consultoria Varese. “E, desde então, vem se mostrando extremamente resiliente, o que só está sendo reforçado agora, na pandemia.”
Dados da Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma) reforçam essa visão. Entre 2014 e 2019, o faturamento das 26 principais redes, que respondem por 44% das receitas das 79 mil farmácias que compõem o setor, saltou de R$ 32,3 bilhões para R$ 53,4 bilhões.
Entre janeiro e março, essas companhias movimentaram R$ 14,32 bilhões, alta de 15,59% na comparação com igual período de 2019. O índice representou o maior crescimento dos últimos seis anos em um primeiro trimestre.
Essa resiliência também vem sendo mostrada pelas poucas redes listadas. O destaque é a Panvel, cujas ações acumulam uma valorização de 57,2% em 2020, ante 1,05% da Raia Drogasil (RD) e um recuo de 1,08% da Profarma, segundo a consultoria Economatica. No ano, o Ibovespa acumula uma queda de 13,72%.
Entre 2014 e 2019, o faturamento das 26 principais redes, que respondem por 44% das receitas do setor, saltou de R$ 32,3 bilhões para R$ 53,4 bilhões
“O setor tem todas as condições de puxar a retomada no mercado no segundo semestre”, diz Gustavo Bertotti, economista da Messem Investimentos. “E essa movimentação é boa para os investidores, pois traz mais opções dentro do segmento, e com projetos fortemente ligados à expansão.”
Para Bertotti, além do desempenho das redes nos últimos anos e durante a pandemia, os próximos anos também trazem boas perspectivas para esses ativos, por conta de fatores como o envelhecimento da população brasileira e o aumento da expectativa de vida no País.
Segundo a consultoria IQVIA, a projeção é de que, em 2050, o número de brasileiros acima de 60 anos chegue a 60 milhões de habitantes. Nesse contexto, entre outros dados, a empresa ressalta que as pessoas nessa faixa etária tomam, em média, mais que cinco medicamentos por dia.
Ao mesmo tempo, todas as grandes redes também vêm impulsionando a oferta de outras categorias de produtos, especialmente, em segmentos como higiene pessoal, perfumaria e cosméticos, o que amplia as fontes de receita.
Em 2019, por exemplo, essas categorias registram um crescimento nas vendas de 11,11%, para R$ 17,3 bilhões. Já no primeiro trimestre de 2020, elas movimentaram R$ 4,4 bilhões, uma alta de 8,31% na comparação com um ano antes.
Expansão e serviços
Com um faturamento de R$ 6,8 bilhões em 2019 e 1.112 lojas em todo o País, a Pague Menos tem justamente a expansão dessa rede como maior foco de seu IPO. A empresa planeja reservar 45% dos recursos captados na oferta primária para essa frente.
Fundada em 1981, em Fortaleza, a companhia já tinha forte presença no Nordeste e no Norte quando adotou um forte ritmo de aberturas nos últimos anos e se consolidou como a terceira maior rede do setor, avançando nos mercados das líderes RD e DPSP, grupo criado em 2011, a partir da fusão entre a Drogaria São Paulo e a Drogaria Pacheco.
Nesse intervalo, não foram poucas as vezes em que a Pague Menos ensaiou um IPO. Esse roteiro também incluiu imbróglios como a prisão de seu fundador, Deusmar Queiróz, em 2018, condenado por crimes contra o sistema financeiro.
Afastado da empresa na época, ele retornou à presidência do Conselho de Administração em fevereiro deste ano, quando sua pena foi reduzida de 15 anos para 10 meses. Na mesma data do registro do IPO, no entanto, a empresa anunciou que sua filha, Patriciana, vai assumir o cargo.
“A empresa tem que se preparar para garantir que os investidores não tenham nenhum receio sobre a sua governança”, diz Alexandre Machado, sócio-diretor da GS&Consult. “À parte disso, a rede tem uma agressividade comercial e, capitalizada, pode incomodar ainda mais as líderes do setor.”
Além da expansão, outro destino das cifras do IPO à vista é reforçar o Clinic Farma, oferta já disponível em 798 unidades da rede e que dá acesso a serviços como medição de pressão e glicemia, vacinação e exames laboratoriais. Em 2019, essa linha realizou mais de 70 mil atendimentos mensais.
Essa oferta vai ao encontro da ampliação da atuação das farmácias, outra tendência no setor. “Essas redes mais estruturadas têm capilaridade, protocolos de segurança e estrutura para atuarem como hubs de serviços de saúde”, diz Serrentino. “E questões como a telemedicina vão reforçar esse papel.”
Com um faturamento de R$ 6,8 bilhões em 2019 e 1.112 lojas em todo o País, a Pague Menos tem a expansão dessa rede como maior foco de seu IPO
Quem está investindo nessa receita de hub de saúde é a RD. A rede aproveitou a pandemia para lançar um projeto-piloto de consultas de telemedicina. Batizada de Saúde em Dia, a iniciativa está sendo testada em 30 lojas. E é mais um elemento no pacote amplo de ofertas da companhia, que inclui marcas próprias, uma plataforma de gestão de saúde e linhas de medicamentos especiais.
Outra novidade recente foi a criação, em novembro, da Stix Fidelidade, empresa de resgate de pontos no varejo em sociedade com o Grupo Pão de Açúcar, que compreende as bandeiras das duas companhias.
A RD também contabiliza bons avanços em sua estratégia digital, especialmente a partir da integração, em 2019, da Onofre, rede pela qual não desembolsou um único centavo. Frustrada por não conseguir impulsionar a marca comprada seis anos antes, a americana CVS Health repassou o ativo e deixou o País, levando consigo os passivos da operação.
Por aqui, a RD segue com um plano de expansão robusto. Mesmo com a Covid-19, a empresa reafirmou a meta de abrir 240 unidades no ano. Hoje, a companhia tem 2.100 lojas no País, responsáveis por um faturamento de R$ 18,4 bilhões em 2019.
“Enquanto todo mercado segurou as aberturas em 2019, eles seguiram com um plano agressivo”, diz Mariana Ferraz, analista da Eleven Financial. “E eles têm muita experiência nessa área, sabem como abrir, onde abrir e como manter a rentabilidade de cada operação.”
Contra-ataque
Para os analistas, a região Sul, um dos focos no mapa dessa expansão da RD, ajuda a explicar o follow on da Panvel, que busca captar entre R$ 700 milhões e R$ 800 milhões na oferta. Com 445 lojas no Sul e apenas 5 em São Paulo, a rede estaria buscando recursos para defender seu terreno.
Motivada ou não pelo avanço da RD, no início do ano, a Panvel anunciou o plano de abrir 500 lojas até 2024, 470 delas em seus domínios. Em relatório de abril, os analistas Gabriel Savi e Luiz Guanais, do BTG Pactual, defenderam o modelo, ressaltando que ele “cria uma barreira natural contra novos players”.
Eles destacaram ainda questões como as marcas próprias da rede e o fato de 10% das vendas da companhia serem realizadas via e-commerce e retirada em loja, por meio de recursos como lockers. “A Panvel foi pioneira no digital e tem um trabalho inovador e arrojado no multicanal”, afirma Serrentino. “E embora não seja das maiores, ela tem um posicionamento mais premium.”
Se a Panvel tem um perfil mais segmentado no público de maior poder aquisitivo, a Profarma destaca, no prospecto preliminar da d1000, que a diversificação de suas marcas é justamente uma das fortalezas da empresa. No Rio de Janeiro, seu principal mercado, a Drogarias Tamoio tem perfil mais popular, enquanto a Farmalife é direcionada aos consumidores de maior poder aquisitivo.
Outro diferencial apontado por analistas é o fato das quatro bandeiras do grupo – que tem cerca de 300 lojas – contarem com o apoio de uma rede de distribuição própria, um braço que gerou uma receita de R$ 5,2 bilhões em 2019, enquanto o varejo faturou R$ 1,2 bilhão.
“Com esse braço, a operação no varejo pula uma etapa importante na cadeia de custo”, diz Mariana, que enxerga como positiva a separação das duas frentes na B3. “Com essa estratégia, eles entendem que vão chegar a um preço mais justo de cada operação. Hoje, os investidores não entendem esse modelo.”
No prospecto da d1000, o grupo também ressalta que a cifra captada será usada para a abertura de lojas, reforço de caixa e outra estratégia que, segundo as fontes ouvidas pelo NeoFeed, deve ganhar corpo com essas movimentações no mercado: as aquisições. Nessa seara, a empresa destaca a experiência acumulada na integração dos ativos comprados para a criação da divisão, em 2016.
Essa não seria a primeira onda de consolidação no setor. No decorrer dessa década, o mercado de farmácias passou por diversos movimentos nessa direção. Entre eles, as fusões que resultaram na RD e no grupo DPSP, em 2011.
“Essas empresas largam na frente, pois já passaram por todas as dores da integração”, afirma Machado. Mas nem todas as companhias que lideraram esse processo sobreviveram. É o caso da Brazil Pharma, fundada pelo BTG Pactual, em 2009.
Depois de abrir capital, em 2011, e captar R$ 466 milhões, a empresa expandiu rapidamente via aquisições e chegou a ter uma rede de 1,2 mil unidades, com bandeiras como Farmais e Sant’Anna. A união de muitas marcas, porém, foi malsucedida e, em 2017, o banco repassou a operação para o fundo Lyon Capital. Dois anos depois, foi decretada a falência da operação.
“Algumas empresas, de fato, ficaram pelo caminho”, diz Serrentino. Ele aponta, no entanto, um avanço a partir do momento em que as redes foram se formando e expandindo suas fronteiras além dos seus domínios. “Essa competição forçou todas as empresas, até mesmo as pequenas, a se profissionalizarem. Hoje, o setor é muito mais qualificado e ainda há muito espaço para crescer.”
Siga o NeoFeed nas redes sociais. Estamos no Facebook, no LinkedIn, no Twitter e no Instagram. Assista aos nossos vídeos no canal do YouTube e assine a nossa newsletter para receber notícias diariamente.