O ano de 2007 é uma grande referência para o mercado brasileiro de capitais. Naquele intervalo de 12 meses, 64 empresas fizeram suas ofertas públicas iniciais de ações (IPOs, na sigla em inglês), um volume recorde para o País, e captaram R$ 55,6 bilhões.

Desde então, diante de um cenário nada favorável, as “visitas” das companhias ao número 275 da Rua XV de Novembro, na região central de São Paulo, tornaram-se cada vez mais raras. O início de 2020 indica, no entanto, que a sede da B3 está voltando ao mapa das empresas. E que o toque da campainha deve ser ouvido diversas vezes durante o ano no balcão da bolsa de valores brasileira.

Os primeiros sinais dessa retomada surgiram em 2019, quando foram captados R$ 89,6 bilhões. Desse montante, R$ 79,7 bilhões vieram, porém, de um total de 37 follow-ons. No período, apenas cinco empresas – Grupo SBF (Centauro), Neoenergia, Vivara, BMG e C&A – seguiram a trilha do IPO.

Se o contexto do ano passado foi escasso em volume de aberturas de capital, os primeiros meses de 2020 vão na direção contrária. Quatro empresas já testaram o apetite dos investidores: Locaweb, de tecnologia; Priner, de serviços industriais; e as incorporadoras Mitre Realty e Moura Dubeux.

Outras 26 companhias estão nessa fila. Entre as candidatas que já protocolaram seus registros destacam-se construtoras e incorporadoras, como Cury, Pacaembu Construtora, You Inc. e One Innovation; e varejistas, como Quero Quero e Petz. Entre outros nomes, a lista inclui ainda Caixa Seguridade e Banco Votorantim (BV).

“Este é, sem dúvida, o momento mais quente do mercado de capitais no País”, diz Alessandro Farkuh, head do Bradesco BBI, banco de investimentos do grupo Bradesco. “O ritmo intenso do final do ano passado continua e nosso pipeline tem aumentado a cada dia.”

No momento, o Bradesco BBI está coordenando metade das ofertas que estão no mercado. A mais recente delas é a Riva 9. Braço da construtora Direcional Engenharia para empreendimentos voltados a famílias com renda mensal entre R$ 4 mil e R$ 10 mil, a operação protocolou seu registro na quarta-feira 4.

Nesta semana, mais empresas engrossaram essa lista: Prima Foods, processadora de carnes; Boa Vista, birô de crédito; e Alphaville Urbanismo, do segmento imobiliário. “Nós vemos cerca de 30 companhias acessando o mercado só nesta janela, até o fim de abril”, afirma Farkuh. “Sendo a grande maioria delas, IPOs.”

Alessandro Farkuh, head do Bradesco BBI

Quem também está testemunhando esses bons ventos é a XP, cuja operação de banco de investimento, criada em 2014, vem sendo reforçada nos últimos dois anos. Depois de liderar, em 2019, os IPOs de C&A, Vivara e Banco BMG, nesse ano, a empresa esteve à frente da abertura de capital da Priner. E, no momento, participa de metade das ofertas em análise no balcão.

“Havia muitas empresas com IPOs represados e que agora enxergam uma janela promissora”, diz Pedro Mesquita, responsável pelo banco de investimento da XP. “Se essa curva se mantiver, entre aberturas de capital e follow-ons, é possível falar em 90, 100 ou até 120 operações no ano.”

Diretor de relacionamento com clientes da B3, Rogério Santana também tem uma perspectiva otimista. “Tudo indica que, em 2020, teremos volumes ainda maiores”, diz. “Não podemos fornecer uma estimativa. Mas podemos afirmar que há um pipeline consistente de companhias aptas ao processo de listagem no curto prazo.”

As projeções de um panorama mais aquecido são compartilhadas por outros nomes importantes do setor. E não estão restritas ao número de IPOs. Mas também ao volume a ser captado no mercado de capitais, seja via abertura de capital ou follow-on.

“Para 2020, nossa expectativa é de cerca de R$ 200 bilhões de ofertas de ações, com um número de IPOs superando o ano passado em quatro ou cinco vezes”, afirmou José Olympio Pereira, CEO do Credit Suisse, durante evento promovido pelo banco no fim de janeiro, em São Paulo.

Cenário favorável

O contexto por trás dessas perspectivas envolve fundamentos como a taxa básica de juros no menor patamar histórico. Esse cenário alimenta a busca dos investidores por ativos de maior risco e retorno, favorecendo a alocação em opções de renda variável.

“Houve um primeiro movimento, em 2019, mais capturado por quem já estava na Bolsa”, afirma Fernando Siqueira, gestor de portfólio da Infinity Asset Management. A disposição para investir, no entanto, começa a esbarrar no número ainda baixo de ativos na B3. “Nesse contexto, o mercado está se aprofundando e a demanda está criando a oferta.”

Entre as fontes ouvidas pelo NeoFeed, há um consenso de que essa não é apenas mais uma simples janela. E de que, mesmo comparado ao ciclo de 2007 a 2010, existe fôlego e apetite para um movimento mais consistente.

“Temos a taxa de juros mais baixa da história e esse patamar veio para ficar”, diz César Mikail, gestor de renda variável da Western Asset Management. “Esse contexto leva o investidor a jorrar dinheiro em ações e a buscar por ativos de boa qualidade.”

Mikhail reforça ainda que esse movimento de deslocamento dos recursos para a renda variável trouxe à tona outra mudança no mercado. Ávidos por retorno, os investidores brasileiros superaram o histórico domínio dos estrangeiros nas participações nas ofertas. Se antes os estrangeiros eram responsáveis por 70% do capital nos IPOs, em 2019, por exemplo, a fatia deles não ultrapassou a casa de 40%.

A procura por ativos turbinada pelos investidores locais, por sua vez, vai ao encontro do momento vivido por muitas empresas. Depois de sofrerem os efeitos da crise, há um bom número de companhias demandando recursos diante de fatores como a inflação controlada e a perspectiva de retomada do consumo, aliados a baixa taxa de juros.

Isso ajuda a explicar a quantidade de representantes de setores como incorporação imobiliária e varejo entre as postulantes à Bolsa. Há espaço, entretanto, para segmentos como logística, transportes, saneamento, seguros e tecnologia nesse grupo.

Em 2019, entre IPOs e follow-ons, foram captados R$ 89,6 bilhões no mercado brasileiro

“Essas empresas estão atrás de financiamento para reativar projetos que estavam paralisados por falta de demanda”, diz Octavio Zampirollo, sócio líder da área de auditoria da Grant Thorton. A empresa participou do IPO da Moura Dubeux e está envolvida em três ofertas em fase de análise na B3, além de ter outros três contratos em negociação.

Zampirollo destaca mais um componente que reforça a diferença desse momento para outras janelas do passado. Para ele, curiosamente, a crise dos últimos anos trouxe um fator positivo que agora é ressaltado nesse aquecimento do mercado de capitais.

“As empresas que sobreviveram a esse período criaram mais musculatura, tornaram-se mais eficientes e estão mais preparadas em termos de governança”, diz ele, ressaltando que os investidores também já têm uma visão mais apurada nessa direção. “Isso acaba tendo um papel fundamental tanto na listagem quanto na precificação dos ativos.”

No balcão

Os quatro IPOs desse início de ano dão uma medida do tamanho do apetite dos investidores. Somadas, as quatro ofertas captaram cerca de R$ 3,63 bilhões. Duas delas, Locaweb e Mitre Realty, alcançaram o preço máximo dentro da faixa estipulada nos prospectos.

As ações das duas companhias subiram, respectivamente, 19,42% e 7,77% em suas estreias na B3. Desde então, cada uma seguiu um roteiro diferente. Segundo dados da consultoria Economatica, a Mitre Realty caiu de um valor de mercado de R$ 2,04 bilhões, em seu primeiro dia de negociação, para R$ 1,65 bilhão na quinta-feira, 5 de março. A Locaweb, por sua vez, saltou de R$ 1,57 bilhão para R$ 2,75 bilhões, nessa mesma base de comparação.

“A valorização da ação logo nos primeiros dias pós-IPO foi a maior prova de que temos mercado para o setor de tecnologia”, diz Fernando Cirne, CEO da Locaweb. Na contramão de países como os Estados Unidos, nos quais as empresas do setor dominam a lista das companhias mais avaliadas, a bolsa brasileira ainda conta com poucas representantes do segmento.

A Locaweb chegou a avaliar a abertura de capital fora do País, uma alternativa escolhida por outras empresas locais, como Stone e XP, que acessaram a Nasdaq. A decisão veio durante as conversas com investidores, quando a companhia buscava validar sua tese.

“Todos deixaram claro que, se a empresa fosse boa, com resultados relevantes e boas perspectivas, entrariam independentemente do local”, conta Cirne. “Como temos uma marca forte no País e o mercado de ações vivia um bom momento, a decisão pela B3 foi natural”. Depois de captar R$ 1,3 bilhão, a empresa vai destinar os recursos a aquisições, capital de giro e liquidação de dívidas.

Já as aberturas de capital das outras estreantes destacam mais dois elementos que, para as fontes consultadas pelo NeoFeed, reforçam a tendência de evolução do mercado brasileiro de capitais. Com atuação focada no Nordeste, a Moura Dubeux está fora do eixo Rio/São Paulo, que, tradicionalmente concentra os IPOs no País. Em sua oferta inicial, a empresa captou R$ 1,25 bilhão.

Ao mesmo tempo, a Priner mostra que começa a haver abertura para IPOs de companhias de menor porte no Brasil. A empresa levantou R$ 173,9 milhões, consolidando o valor mais baixo já captado em uma abertura de capital no País.

“Nós ajudamos a quebrar o mito de que o mercado de capitais no Brasil estava restrito aos IPOs de R$ 1 bilhão para cima”, diz Marcelo Costa, diretor financeiro e de relações com investidores da Priner. “Sempre entendemos que era possível. Nossa oferta confirmou essa crença e aconteceu no momento certo.”

Somados, os quatro IPOs realizados nesse ano no País captaram R$ 3,63 bilhões

Fruto de um spin-off da Mills, a Priner vinha se preparando para o IPO desde que foi adquirida pelo fundo de private equity Leblon Equities, em 2013. O estágio de governança alcançado, a identificação de novas oportunidades de negócio e a percepção de que a condução da política econômica criou um cenário sólido no médio e longo prazos fizeram com que a empresa entendesse que esse era o momento de concretizar o projeto.

“Durante o roadshow com investidores, tivemos a certeza que nesse tempo de preparação fizemos a nossa lição de casa”, afirma Costa. Capitalizada, a Priner vai destinar os recursos para três frentes: aquisições, modernização de seus equipamentos e capital de giro.

“Existe um valor grande querendo ser alocado nesses ativos”, diz Mesquita, da XP, cujo banco de investimento coordenou a oferta da Priner. “Nós testamos o mercado com a Priner, tivemos sucesso e hoje existem várias outras empresas desse porte nos procurando.”

Pedro Mesquita, responsável pelo banco de investimento na XP

Ele aponta que, além dos fundamentos favoráveis, outro fator ajuda a explicar o olhar mais atento a esse novo filão. “Foram criadas muitas assets independentes, o que ampliou o mercado, antes concentrado apenas nos grandes investidores e gestoras”, afirma. “O Brasil carece de novas teses e é muito maior que São Paulo e a Faria Lima.”

Para Santana, da B3, o Brasil vem de uma cultura de investimento avessa ao risco. Como consequência, os recursos escassos eram direcionados a um grupo limitado de empresas, com características específicas. Mas com a nova conjuntura econômica, esse perfil vem se alterando.

“A sofisticação do investidor brasileiro está no início da curva de crescimento”, afirma Santana. “O investidor institucional agora tem olhado com mais atenção as ofertas menores e, eventualmente, está criando portfólios de ações com maior diversidade de ativos”, afirma Santana. Ele destaca ainda os investidores pessoa física, que começam a seguir a mesma abordagem.

Zampirollo, da Grant Thornton, também enxerga boas perspectivas nessa tendência. “É um sinal de amadurecimento do mercado”, diz. “E também das empresas, que começaram a se preparar para atingir um novo estágio em suas operações.”

Riscos?

À parte das projeções otimistas, algumas questões surgem como potenciais entraves para a consolidação desse novo caminho na Bolsa brasileira. Com a reforma da Previdência aprovada e outras a caminho, a principal incerteza à frente parece ser a extensão dos efeitos do coronavírus, cujo avanço fora da China vem afetando os mercados em todo o mundo.

A previsão, porém, é de que nem mesmo esse cenário será capaz de trazer grandes impactos no ímpeto pelos IPOs. “O vírus está chegando ao Brasil e ainda vai assustar o mercado”, diz Mikail, da Western Asset. “Mas passado esse momento inicial, todos estarão olhando os resultados no longo prazo.”

Farkuh, do Bradesco BBI, defende a mesma tese. “Os drivers de crescimento doméstico podem até ser impactados, mas não mudam de direção”, afirma. “Mesmo com a turbulência atual do mercado, estamos convencidos e muito confiantes de que 2020 será um ano de mudança de patamar para o mercado de capitais no Brasil.”

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