Carlos Nobre conjuga a maior parte de suas frases na primeira pessoa do plural. O seu “nós” é usado tanto para frisar a importância do coletivo na necessidade de proteção do meio ambiente, quanto na divisão da responsabilidade de como chegamos até aqui.

Apesar do discurso ser inevitavelmente alarmista — não há como preservar a vida na Terra se deixarmos a temperatura subir mais de 2°C nas próximas décadas —, há boas notícias. A primeira é um interesse repentino de todas as áreas no assunto que antes só tinha audiência no meio científico.

Para Nobre, a reação imediata da sociedade tem a ver com as chuvas de 2024 no Rio Grande do Sul. Depois, a esperança na COP 30, que pode aumentar o investimento dos países ricos e decretar que é preciso zerar a emissão de carbono até 2040. E, por último, diversos projetos na floresta que aliam a tecnologia à sabedoria dos povos originários e ampliam a noção do que precisamos fazer.

Nesta entrevista realizada para a revista Velvet e cedida ao NeoFeed, Nobre, um dos principais especialistas em clima do mundo, explica os impactos do aumento de temperatura e o que precisa ser feito para evitar uma calamidade.

“Se o planeta aquecer 4°C, o único lugar habitável para o ser humano vai ser o Ártico, Antártica e o topo das montanhas mais altas. O resto todo é inabitável porque a temperatura equatorial passaria do limite do corpo humano.” Leia a entrevista:

Você disse que 80% dos convites que tinha para dar palestras eram no meio científico. Agora, 70% dos convites que recebe são para a sociedade como um todo. É um interesse genuíno?
A percepção no Brasil inteiro mudou após as enchentes no Sul em 2024. É interesse genuíno, porque nós vivemos o recorde histórico da mudança climática. Eventos extremos vinham acontecendo há muito tempo e nós cientistas falávamos sobre isso, mas não tinha repercussão. O evento no Sul durou muito tempo. Quando o aeroporto da cidade fica inoperante por meses, liga um alerta. Há entrevistas que eu dei em 2008, 2009 e 2012 falando que, quando a temperatura do planeta atingisse 1,5°C a mais, aconteceriam situações graves em São Paulo. E nunca ninguém prestou atenção. Hoje, estão prestando. Se chegar a 2°C, nós perderemos quase 100% das espécies de recifes de corais, que mantêm 25% da biodiversidade oceânica. Aí um monte de outras espécies seriam extintas.

Isso mudou não só no Brasil. Existe algum evento que possa ter criado uma consciência maior no mundo?
Todo o mundo está batendo recordes. Valência, na Espanha, nunca teve tanta chuva e tem tudo a ver com o oceano Atlântico, que bateu o recorde de temperatura — o vapor d’água subiu, passou pela África e caiu em cima de Valência. O maior incêndio da história de Los Angeles foi porque teve um jato de 150 km/h que derrubou muitas linhas de transmissão. Têm acontecido com mais frequência, e ligou o alerta para o evento climático extremo que mais leva à morte: onda de calor. São mais de 500 mil mortes por ano e a imprensa está falando disso. Biologicamente, o nosso corpo não evoluiu para resistir a essa temperatura alta — o corpo deixa de transpirar e não resistimos mais que algumas horas. Cidades como Nova York e São Paulo ficariam inabitáveis por parte do ano.

E tem também a situação das geleiras…
O Ártico esquentou muito e não tinha mais gelo no verão. Isso faz com que absorva mais a luz solar e aqueça ainda mais. O derretimento do manto de gelo da Groenlândia e da Antártica Ocidental acelerou também. Hoje, se fala que no fim do século chegaremos a 50 cm ou 1 m de elevação marítima. No Rio de Janeiro, 500 mil pessoas vivem a menos de 50 cm do nível do mar. Não há barreiras que contenham uma elevação contínua como essa.

“Temos um desafio gigantesco. Estamos muito próximos do ponto de não retorno. Os países têm que zerar as emissões até 2040”

E o que os líderes globais deveriam fazer para evitar isso? Porque parece ser uma situação muito iminente…
Temos um desafio gigantesco. Estamos muito próximos do ponto de não retorno. Os países têm que zerar as emissões até 2040… E o Brasil tem todas as condições de fazer isso. Na COP 29, o estudo mostrou que era necessário US$ 1,3 trilhão para acelerar a transição energética e US$ 600 bilhões por ano para aumentar a adaptação. Infelizmente, aprovaram apenas US$ 300 bilhões por ano. Nós, cientistas, estamos muito preocupados.

Mesmo com tantos alertas, ainda parece haver uma certa resistência da sociedade em assumir a responsabilidade e se mobilizar mais pela causa ambiental. É por conta do discurso ser tão alarmista que as pessoas pensam que essa é uma causa perdida?
Não dá para aceitar a afirmação que isso é um assunto perdido… a gente tem que pensar um pouco nos nossos herdeiros. Temos que atacar o problema agora. Não tem jeito de solucionar isso lá na frente.

Mas o que é possível se fazer hoje?
Trabalhar na economia circular e não usar plástico ou produtos que colaboram com o desmatamento são algumas delas. Mesmo em São Paulo, há muitos lugares em que você compra todos os produtos da agricultura, principalmente a carne bovina, com selo verde. É garantido. Há ONGs que vão verificar se o produto é zero desmatamento. Todos os brasileiros deveriam só comprar agricultura e pecuária regenerativa.

“Temos que atacar o problema agora. Não tem jeito de solucionar isso lá na frente”

Como isso poderia ser facilitado?
O governo precisaria estipular prazos para tornar obrigatórias as agriculturas e pecuárias regenerativas — e temos condição de regularizar isso rapidamente e produzir ainda mais. 15% das fazendas pecuárias do Brasil migraram para formas mais sustentáveis e o lucro dobrou.

A extensão continental do Brasil faz diferença neste caso?
Há um dado interessante: temos quase 1 milhão de km² de agricultura no Brasil. Só de soja, 400 mil m². A Holanda tem 26 mil km² e exporta a mesma coisa que o Brasil, porque também produz industrializados de excelente qualidade. Não faz sentido a lógica de que precisa aumentar a área plantada derrubando florestas.

Qual a sua visão hoje sobre como estamos na Amazônia?
A gente conseguiu reduzir perto de 60% do desmatamento em todos os países amazônicos em 2023 e 2024. Mas houve um aumento enorme das áreas degradadas. E o que causou a degradação? Fogo. O INPE mostrou que mais de 95% dos incêndios na Amazônia e no Cerrado, no Pantanal, foram causados por humanos.

“O INPE mostrou que mais de 95% dos incêndios na Amazônia e no Cerrado, no Pantanal, foram causados por humanos”

Mas qual a diferença desse incêndio e do desmatamento?
O incêndio é feito para desmatar. O desmatamento foi reduzido com um sistema satelitário que detecta o crime diariamente. Mas o satélite só detecta o fogo quando a área queimada chega a 40 m². A área é super inflamável e só dá para perceber o que aconteceu 2h depois, quando o criminoso está longe. Se colocar fogo por três anos seguidos, aquela floresta acaba, mata tudo. Hoje, estuda-se tecnologias de satélite que identifiquem o fogo com 3 m². Aí leva de 9 a 10 minutos para perceber e a polícia pode ter acesso a todos os celulares que estão no local.

Você já viu incêndios criminosos de perto?
Em 2024, eu estava em Anavilhanas (AM), maior arquipélago fluvial do mundo, com 434 ilhas. Quando chegamos, contamos 14 incêndios. À noite choveu e apagou tudo. No dia seguinte, contamos 64 incêndios. É crime. Mesmo se não tiver nenhum novo foco, vai demorar décadas para a floresta se restabelecer.

E para evitar situações como essa seria importante estimular a bioeconomia. Assim, as pessoas que vivem nessas regiões também conseguem ter seu sustento.
A floresta precisa estar em pé e rios fluindo. Existem várias cooperativas na Amazônia que produzem até 50 produtos da biodiversidade. O açaí já traz mais de US$ 1 bilhão por ano para a Amazônia brasileira. Isso é uma grande vantagem e pode empregar 20 vezes mais por hectare do que uma plantação. Na maioria delas, os cooperados já passaram para a classe B — e na população rural da Amazônia, praticamente todos são classe D e E.

Qual é o desafio para fazer isso vingar aqui?
O Brasil é o país que tem a maior biodiversidade do mundo. Mas todos os produtos da biodiversidade amazônica (açaí, cacau, castanha etc.) representam 1,2% do PIB da Amazônia. A pecuária é 17% do PIB. Nós, brasileiros, consumimos pouco produto da biodiversidade e muita carne.

“O açaí já traz mais de US$ 1 bilhão por ano para a Amazônia brasileira”

Você se tornou vegetariano por causa disso?
Culturalmente, eu gostava de churrasco. Em 2007, eu fui dar uma palestra na USP de São Carlos e estava mostrando uns slides de uma larga área desmatada repleta de bois. Um aluno perguntou se eu comia carne que vinha do desmatamento da Amazônia. Eu não sabia responder. Fui ao mercado e descobri que não rastreavam a procedência da carne. Parei de comer naquele dia.

Que história incrível.
Foi bom também porque comer excesso de carne não é bom para a saúde. E é meio óbvio… como eu vou defender a Amazônia e comer carne? Hoje, grandes marcas de supermercado não compram mais carne de área desmatada. Estão estudando também vetar produtos de pecuarista que usa fogo nas plantações e monitorar quem está mentindo sobre isso.

Você acredita que a tecnologia tem um papel fundamental na preservação?
Tem. Qual é a energia mais barata do mundo hoje? Solar e eólica. Isso é tecnologia. Há 20 anos, um painel solar custava cinco vezes mais caro que hoje. Houve um investimento muito grande para melhorar e é a tecnologia que faz ficar totalmente factível. O hidrogênio verde ainda é caro, porque é feito em uma escala muito pequena, mas o Brasil está fazendo a primeira fábrica. Aí, vai ser mais barato do que gasolina. Precisamos realmente investir muito nisso.

O Amazônia 4.0 é um plano de proteção?
É um sonho meu demonstrar o que a gente chama agregação de valor, a bioindustrialização. A ideia é combinar um pouco o conhecimento dos povos indígenas, comunidades locais, com a indústria 4.0. Por exemplo, um laboratório para industrializar o cacau e o cupuaçu. É superavançado, com inteligência artificial, painel solar e energia renovável. Também fizemos um sistema de economia circular, sem nenhum resíduo, com tudo reciclado. Já capacitamos três comunidades no Pará. Vamos construir a biofábrica para a comunidade Suruí, em Rondônia. Os povos originários não são contra nada disso.

“A ideia é combinar um pouco o conhecimento dos povos indígenas, comunidades locais, com a indústria 4.0”

E o que mais vocês pretendem fazer?
Já desenhamos um jeito de produzir quatro óleos de castanha comestíveis de alto nível. Queremos fazer um laboratório para fazer o sequenciamento genômico de plantas, de animais e também de micro-organismos, capacitando populações locais com a escola politécnica da USP. Outro objetivo: desenvolver um Instituto de Tecnologia da Amazônia, com engenharia de energias renováveis e bioengenharia. Tudo vem de dinheiro de filantropia — não há apoio do governo.

Quem te vê tão engajado na ciência nem imagina que você pensava em ser jogador de futebol, como seu pai…
Sim, eu nasci nesse universo. Em 1963, em Santos, cheguei a conhecer o Pelé. Nunca vou me esquecer. Fui admitido no infantil do São Paulo e achava que seria jogador, mas um ortopedista descobriu que eu tinha um problema no joelho e pediu para eu parar de jogar. Eu parei por um tempo.

Mas como foi abandonar os esportes e parar na ciência?
Naquele tempo, se você era bom de matemática e física, tinha que fazer vestibular de engenharia. Passei no ITA, mas os esportes seguiam presentes. Lá, eu era titular do futebol, do vôlei e reserva de basquete. No MIT, onde fiz doutorado, fui contratado para a liga de futebol e ganhava uma bolsa de estudos. O futebol me ajudou muito.

E seus irmãos, como foram parar na ciência?
Meu pai era muito preocupado com o meio ambiente e promovia longas caminhadas na Mata Atlântica. Todos se interessaram. Meu irmão Paulo foi o primeiro aluno do curso de meteorologia da USP, o único que se formou naquela turma. Meu outro irmão, o Antônio Donato, fez agricultura. O mais novo, Ismael, fez biologia. E o Wilson fez engenharia e hoje é professor da FGV em Brasília.

E eles se preocupam com meio ambiente como você?
Todo mundo tem a mesma preocupação, sem dúvida. E precisamos ter.

Idealmente, qual seria para você o grande legado desta COP 30?
Zerar as emissões até 2040 e não deixar a temperatura chegar a 2°C. Convencer todos os países do mundo a colocar US$ 1,3 trilhão em investimento de meio ambiente. Mas o Brasil pode caminhar rapidamente sem investimentos tão grandes assim. Para brecar o desmatamento, não precisamos de bilhões de dólares dos outros. Precisamos fiscalizar crimes.

*Christian Gebara é presidente da Vivo e diretor artístico da revista Velvet