Antes de serem vistas como nova infraestrutura de pagamentos, é importante entender o que são stablecoins. Em essência, tratam-se de moedas digitais projetadas para manter paridade com moedas fiduciárias como o dólar, o euro ou o real.
Essa paridade geralmente é garantida por reservas mantidas por um emissor privado. As stablecoins mais conhecidas, como USDC (da Circle) e USDT (da Tether), circulam em blockchains públicas e podem ser usadas para pagamentos, remessas, aplicações financeiras e liquidação de contratos digitais.
Gigantes como Visa, Mastercard, PayPal, Fiserv, Coinbase e Stripe estão desenvolvendo soluções baseadas em stablecoins com o objetivo de oferecer liquidação instantânea, programabilidade e interoperabilidade global. Essas iniciativas indicam uma tendência: stablecoins estão migrando do ecossistema cripto para o centro das estratégias financeiras institucionais.
A convergência entre pagamentos digitais tradicionais e stablecoins está transformando a infraestrutura financeira global. A Visa pioneira na integração de USDC em sua rede de pagamentos, enquanto a Mastercard avança através da Global Dollar Network, testando stablecoins com liquidação em tempo real que mantém os padrões de segurança de sua infraestrutura global.
No setor bancário, a Fiserv desenvolveu a FIUSD como stablecoin padrão para mais de 3.000 bancos comunitários americanos, criando uma ponte crucial entre instituições financeiras tradicionais e moedas digitais. Paralelamente, grandes players de pagamentos como PayPal lançaram suas próprias soluções, o PYUSD, enquanto Coinbase e Stripe expandem rapidamente a adoção comercial de stablecoins em e-commerce e transferências internacionais.
Esta evolução sinaliza uma mudança estrutural: stablecoins não são mais experimentos cripto, mas sim componentes essenciais da nova arquitetura de pagamentos. A integração crescente entre moedas digitais e o sistema financeiro tradicional sugere que estamos no início de uma era onde a velocidade, transparência e eficiência das transações blockchain se tornam o novo padrão para pagamentos globais.
BRZ, regulação e o futuro com Drex
No mercado brasileiro, o BRZ representa a experiência mais significativa com stablecoins até o momento. Emitida pela Transfero e pareada ao real, esta moeda digital atende principalmente investidores locais que operam em exchanges internacionais e realizam arbitragem de criptoativos. Embora seu uso permaneça concentrado em nichos especializados, o BRZ comprova a viabilidade técnica e demanda latente por soluções de pagamento digital lastreadas em moeda nacional.
O ambiente regulatório brasileiro ainda está em desenvolvimento. Apesar de não ter publicado diretrizes específicas sobre stablecoins, o Banco Central monitora atentamente o desenvolvimento deste mercado, sinalizando uma abordagem cautelosa mas não restritiva. Esta postura equilibrada permite inovação controlada enquanto preserva a estabilidade do sistema financeiro nacional.
O grande marco será o Drex, a moeda digital brasileira em desenvolvimento. Mais que uma simples digitalização do real, o Drex está sendo projetado como infraestrutura base para um ecossistema financeiro tokenizado, onde contratos inteligentes, DeFi e pagamentos programáveis poderão operar de forma interoperável e totalmente regulada. Esta iniciativa posiciona o Brasil na vanguarda da inovação em moedas digitais governamentais, criando um framework que pode servir de modelo para outros mercados emergentes.
Onde as stablecoins agregam valor
A competitividade das stablecoins como meio de pagamento varia drasticamente conforme o contexto regulatório e a infraestrutura local. Em mercados com sistemas de pagamento instantâneo consolidados, como o Brasil com o Pix, as stablecoins enfrentam desvantagens significativas no varejo doméstico. A necessidade de aquisição prévia, barreiras técnicas de uso e limitada integração com o sistema bancário tradicional tornam-nas menos atrativas que soluções nativas gratuitas e instantâneas.
O cenário se inverte completamente nos pagamentos transfronteiriços. Aqui, as stablecoins demonstram superioridade técnica e econômica: operação contínua 24/7, eliminação de múltiplos intermediários bancários e redução significativa de custos e tempo de liquidação. Esta vantagem é particularmente pronunciada em casos de uso específicos como remessas internacionais, pagamentos para freelancers globais e transações B2B entre mercados emergentes, onde o sistema bancário tradicional é mais custoso e lento.
A tendência sugere uma coexistência estratégica: stablecoins ocupando nichos onde agregam valor real, principalmente fluxos internacionais, enquanto sistemas nacionais como Pix mantêm dominância no varejo doméstico. O Drex busca unir essas capacidades sob um arcabouço regulado, interoperável e de confiança institucional.
Do ponto de vista da experiência do usuário, ainda existem desafios importantes. Para o pagador, adquirir e usar stablecoins exige conhecimento sobre carteiras digitais, chaves privadas, taxas de rede e gestão de risco cambial. Para o recebedor, aceitar stablecoins significa lidar com gateways de pagamento especializados, possível exposição cambial, conversão em moeda local e complexidade contábil adicional.
Essas barreiras técnicas, porém, estão sendo sistematicamente reduzidas por fintechs e exchanges brasileiras. O Mercado Bitcoin, por exemplo, oferece USDC com liquidez imediata em reais, enquanto o Nubank lançou ferramentas de swap cripto diretamente no aplicativo e firmou parceria com a Circle para ampliar o acesso ao USDC para seus 85 milhões de clientes na América Latina. Essas iniciativas democratizam o acesso e simplificam a experiência do usuário final.
Embora o Pix domine o varejo formal, stablecoins vêm ganhando espaço em nichos estratégicos: freelancers que prestam serviços para o exterior, microimportadores que compram em plataformas asiáticas, e criadores de conteúdo digital que recebem pagamentos de plataformas internacionais. Para esses grupos, o uso de stablecoins representa agilidade operacional, acesso direto ao dólar e menor dependência de intermediários bancários tradicionais.
Trata-se de uma adoção silenciosa, mas que revela a versatilidade dessas moedas em casos de uso específicos onde o sistema financeiro tradicional apresenta limitações. Essa penetração gradual em nichos de alto valor sugere potencial de expansão conforme as barreiras técnicas continuem sendo removidas.
Perspectiva global e implicações estratégicas
Fora do Brasil, o avanço das stablecoins acelera exponencialmente. O World Economic Forum estima que o volume de transações com stablecoins tenha ultrapassado US$ 11 trilhões em 2024, superando o total combinado de Visa e Mastercard no mesmo período. Este crescimento evidencia uma tendência estrutural: a busca por uma nova infraestrutura de pagamentos mais global, instantânea e programável.
Apesar do entusiasmo crescente, o Banco de Compensações Internacionais (BIS) apresenta uma análise cautelosa sobre os limites das soluções privadas na infraestrutura monetária moderna. Em seu relatório de 2025, a instituição estabelece três critérios fundamentais para avaliar se qualquer forma de dinheiro, pública ou privada, pode efetivamente sustentar o sistema financeiro contemporâneo: unidade de valor (singleness), capacidade de adaptação (elasticidade) e resiliência regulatória (integridade).
Segundo a avaliação técnica do BIS, as stablecoins, embora demonstrem utilidade em nichos específicos, ainda apresentam deficiências estruturais nos três critérios. Em termos de unidade de valor, elas não garantem equivalência legal plena com moedas soberanas e podem ser negociadas com deságio em períodos de stress. Quanto à elasticidade, dependem de pré-financiamento e não respondem dinamicamente às necessidades da economia real. Em relação à integridade sistêmica, operam em redes descentralizadas com jurisdições fragmentadas, apresentando riscos de compliance e potencial uso ilícito.
A conclusão do BIS é que uma verdadeira inovação monetária sustentável requer integração harmônica com sistemas públicos, destacando o papel das moedas digitais de bancos centrais (CBDCs) e infraestruturas tokenizadas interoperáveis como caminhos mais robustos para o futuro dos pagamentos digitais.
Reconhecendo tanto o potencial quanto as limitações identificadas pelo BIS, reguladores internacionais estão desenvolvendo diretrizes normativas para viabilizar o uso seguro e transparente de stablecoins. Nos Estados Unidos, o GENIUS Act, aprovado pelo Senado em junho de 2025, representa um avanço legislativo significativo, ao estabelecer requisitos rigorosos: lastro 1:1 em ativos líquidos de alta qualidade, auditorias regulares independentes e proteção aos detentores. O projeto aguarda agora análise final na Câmara dos Deputados antes de eventual sanção presidencial.
Na União Europeia, o framework o MiCA (Markets in Crypto-Assets) já está operacional, tratando emissores de stablecoins como instituições financeiras sujeitas à supervisão prudencial completa. Na região Ásia-Pacífico, Singapura, Japão e Hong Kong desenvolveram regimes regulatórios específicos, cada um adaptado às suas realidades econômicas locais.
No Brasil, embora ainda não existam regulamentações específicas para stablecoins, o desenvolvimento do Drex está criando um ambiente propício para a tokenização supervisionada pelo Banco Central. Esta evolução pode incluir eventual regulamentação de stablecoins privadas que atendam aos padrões de segurança e compliance estabelecidos pela autoridade monetária nacional.
A predominância do dólar como lastro das stablecoins mais utilizadas (USDC e USDT) reforça o papel da moeda americana como padrão digital global, trazendo implicações significativas para a soberania monetária de países periféricos. Por outro lado, essa mesma força levanta preocupações legítimas sobre controle monetário, uma vez que moedas privadas referenciadas ao dólar passam a circular fora da supervisão dos bancos centrais locais.
Essa dinâmica levanta questões estratégicas legítimas sobre autonomia política monetária, especialmente para países que buscam reduzir a dependência do sistema financeiro americano. A resposta coordenada através de CBDCs nacionais e frameworks regulatórios emerge como estratégia de preservação da soberania monetária na era digital.
No Brasil, com o Pix consolidado no varejo e o Drex em desenvolvimento, as stablecoins devem ocupar um papel complementar, ajudando a conectar fronteiras e influenciando a próxima geração de soluções financeiras globais. Essa transição apresenta oportunidades e desafios: pode fortalecer fintechs brasileiras e ampliar o comércio exterior, mas exige atenção regulatória para evitar desintermediação excessiva e riscos ao consumidor.
Com Drex e Pix, o País reúne os elementos para uma arquitetura híbrida, eficiente e segura, que combina inovação tecnológica com supervisão prudencial.
Embora ainda não sejam candidatas a substituir completamente o dinheiro tradicional, as stablecoins podem ampliar significativamente o alcance da inclusão financeira, especialmente em países com sistemas bancários subdesenvolvidos ou em contextos regulatórios bem estabelecidos.
Quando ancoradas em instituições confiáveis e adequadamente reguladas, as stablecoins têm potencial para atuar como catalisadoras de inovação financeira, especialmente em transações internacionais, conectando usuários, empresas e mercados de forma mais ágil, acessível e segura.
A revolução dos pagamentos digitais está apenas começando, e as stablecoins representam uma peça fundamental nessa transformação global.
(Colaborou Clécia Simões)
*Edson Santos é Conselheiro, Consultor, Advisor e Investidor Anjo, com mais de 25 anos de experiência em meios de pagamento e serviços financeiros, autor do livro “Do Escambo à Inclusão Financeira - A evolução dos meios de pagamento” e coautor de “Payments 4.0 - As forças que estão transformando o mercado brasileiro”.
*Clécia Simões é Conselheira Estratégica, Investidora Anjo e Especialista em Capital Humano, com atuação destacada em fintechs, IA e inovação. Com mais de 20 anos de experiência como executiva de RH, foi CHRO da Dock e da WeWork na América Latina. É fundadora da Mind Design Lab, consultoria focada em cultura organizacional e saúde mental. Atualmente, atua ainda como Strategic Advisor em startups no Brasil e no Vale do Silício.