Durante a pandemia, quando as empresas adotaram o home office, as fronteiras entre a vida pessoal e a profissional diluíram-se. Mas o que se vê hoje, mesmo com a volta de muitas empresas ao modelo presencial, vai muito além de um mero esvanecimento de barreiras.

O tempo em casa e o tempo no escritório estão se fundindo em um único tempo — a “jornada infinita de trabalho”. A tendência está descrita na edição 2025 do Work Trend Index, o relatório global da Microsoft sobre o futuro corporativo.

A partir dos trilhões de sinais de produtividade anônimos captados pelas ferramentas e serviços do Microsoft 365, entre janeiro e meados de fevereiro, os pesquisadores da big tech chegaram à conclusão: enquanto estão acordadas, as pessoas (quase) nunca desligam do trabalho. E isso se deve à combinação entre o expediente remoto e a facilidade de comunicação proporcionada pelas novas tecnologias.

“Antigamente, a comunicação era mais custosa, tomava mais tempo… e, nos últimos anos, tudo isso mudou. É possível mandar um e-mail em dois segundos e responder mensagens instantaneamente — o que alterou a dinâmica do mundo”, diz Alexia Cambon, head de pesquisa do Future of Work e Copilot da Microsoft em entrevista ao NeoFeed.

O que você faz logo ao despertar? Com calma, se prepara para o dia que começa? Ou, já pega o celular na mesinha de cabeceira?

Mais de 40% das pessoas checam a caixa de e-mails, preparando-se para o início do expediente, indica estudo da consultoria Deloitte. A partir daí, elas são engolidas por um rimo frenético de mensagens, reuniões e notificações de chat.

Globalmente, o expediente varia muito, mas o padrão mais comum é o das nove da manhã às cinco da tarde.

Pois bem, o levantamento da Microsoft mostra que, às oito, o aplicativo Teams já está a mil, superando o email em número de visualizações.

Até o final do dia, cada funcionário recebe, em média, 153 mensagens, um aumento de 6% em comparação ao ano passado. Em algumas regiões, como a Europa, o índice chega a 20%.

Aos poucos, as mensagens cedem espaço para as reuniões. Na radiografia traçada pelo Work Trend Index, o período mais sobrecarregado do dia é o das onze da manhã, quando uma avalanche de mensagens se soma às trocas constantes de aplicativo — o que comprova o frenesi nesse horário.

Organização do caos

Mas são também intensos os intervalos das nove às onze e de uma às três da tarde. Levando-se em consideração o funcionamento do relógio biológico da maioria dos trabalhadores, esses são os momentos de maior produtividade. Mas, em vez de aproveitar essa janela de oportunidade, o foco está em outras atividades.

“Nossa telemetria mostra que, em média, os funcionários que usam o Microsoft 365 são interrompidos a cada dois minutos por uma reunião, e-mail ou notificação. Esse ruído digital concorrente não aparece no calendário, mas, como muitos trabalhadores da informação podem atestar, ele é profundamente sentido”, lê-se no relatório da Microsoft.

Não à toa, eles aproveitam o intervalo do almoço para as tarefas que exigem mais atenção — como comprovado pelo aumento nesse momento do uso de programas como Word, Excel e PowerPoint.

Os funcionários devem aprender a se desligar do trabalho fora do expediente

"À medida que as demandas dos negócios se tornam mais complexas e as expectativas continuam aumentando, o tempo antes reservado para foco ou recuperação pode agora ser gasto em atualizações, preparações e busca por clareza", informa a Microsoft. "É o equivalente profissional a ter de montar uma bicicleta antes de cada passeio. Muita energia é gasta organizando o caos antes que o trabalho significativo possa começar."

Noite adentro

Ao contrário do que acontecia em um passado recente, ao anoitecer, as atividades não cessam — nem sequer diminuem. As reuniões de negócios marcadas para depois das oito da noite aumentaram 16% em 2024, impulsionadas pelo aumento das equipes compostas por integrantes espalhados mundo afora.

Além disso, o funcionário médio de uma grande empresa envia ou recebe mais de 50 mensagens fora do horário comercial. Até às dez da noite, quase três em cada dez voltam a espiar a caixa de e-mail. Assim como a hora do almoço, a noite virou uma nova janela produtiva. Ou seja, o trabalho já começa e só termina na cama.

Os riscos da “jornada infinita” são enormes, como diz ao NeoFeed Luckas Reis, head de psicologia da Vittude, healthtech de soluções de saúde mental no mercado B2B. Os perigos vão desde o aumento da solidão até casos de ansiedade e depressão.

“Isso tem sido um desafio muito grande no Brasil. Há dois anos, o índice de afastamento por problemas de saúde mental cresceu 40%. Apenas em 2024, chegou a 70%”, explica o especialista. “E, para o ano que vem, deve aumentar ainda mais.”

A sobrecarga de trabalho é um problema que deve ser observado e identificado pelas empresas. Porém, também os funcionários devem ser “educados” individualmente para que “aprendam” a se desligar do trabalho fora do expediente, alerta Reis.

“As pessoas sentem que precisam mostrar trabalho, correr atrás de uma promoção ou mesmo evitar os problemas da vida pessoal e assim recorrem às horas vagas para atividades que deveriam ser feitas dentro do horário comercial”, diz. “Nisso, existe um desafio para que as pessoas consigam se gerir, colocar limites e entender a hora de parar. É algo que chega a ser cultural, mas precisa ser avaliado com cuidado.”

Vida social anulada

À medida que o trabalho passa a ocupar espaços cada vez maiores, a solidão é uma grande ameaça. Aos poucos, a vida social fica em segundo plano e a família deixa de ser prioridade.

Nas novas gerações, esse quesito se torna ainda mais relevante. Isso porque, além da questão cultural do brasileiro de evitar conflitos, os mais novos também estão com grande dificuldade de lidar com frustração, o que leva ao recrudescimento de doenças associadas ao trabalho — comprometendo inclusive o ambiente dentro das organizações.

Pela pesquisa da Microsoft, as lideranças, porém, parecem caminhar em sentido oposto. Perguntadas sobre o que elas esperavam de seus colaboradores, 53% foram taxativas: mais dedicação. No Brasil, esse índice foi de 40%.

“Isso mostra que, em comparação com o mundo, os brasileiros estão entregando e se dedicando bastante às suas funções, algo muito superior ao restante do mundo”, avalia Alexia. “No país, os investimentos em IA também estão maximizados quando o assunto é força de trabalho, o que mostra que existe essa preocupação com os funcionários.”

Para a executiva, o futuro será completamente diferente com a inclusão da inteligência artificial e, em breve, todos os trabalhadores precisarão desenvolver capacidades de gestão, já que os AI Agents devem dominar o mercado de trabalho.

Em sua visão, com eles, será possível otimizar e reduzir muitas das questões vividas hoje, já que as tarefas mecânicas ficarão destinadas à tecnologia, dando maior espaço para a criatividade. Porém, até que esse futuro chegue, é preciso tomar medidas para resolver o problema vivido hoje. A jornada infinita de trabalho não faz mal apenas aos funcionários. Ao fim e ao cabo, compromete o bom andamento do negócio.