Graças à sensação que a realidade virtual nos proporciona, de estarmos totalmente imersos em um mundo imaginário, as experiências narrativas criadas para essa tecnologia costumam buscar as simulações mais espetaculares possíveis.

Ao colocarmos o headset, é normal sermos transportados para outros planetas, para o interior de um vulcão, para um momento decisivo da História ou mesmo para dentro do corpo humano.

Ricardo Laganaro, um dos pioneiros em projetos de realidade virtual no Brasil, entende a “tentação”. “Ao percebermos que podemos ir a qualquer lugar, acabamos pirando”, diz ele, rindo.

E foi justamente isso que Laganaro quis evitar ao criar “A Linha”, experiência narrativa e interativa que representará o Brasil no Festival de Cinema de Veneza, um dos mais importantes do mundo, com uma história de amor em VR (sigla para “virtual reality”).

A 76ª edição do festival italiano, com inauguração em 28 de agosto às margens do Mar Adriático, apresenta uma mostra paralela, voltada exclusivamente aos filmes de realidade virtual.

É nela que a experiência assinada por Laganaro disputará prêmios, ao contar um romance à moda antiga, estrelado pelos bonecos Pedro e Rosa que vivem em uma maquete da São Paulo dos anos 1940. É a primeira vez que o Brasil participa dessa competição e disputa com 30 produções concorrentes, vindas de diversos países do mundo.

Esta é a terceira edição do Venice Virtual Reality, um sinal de que o cinema já reconhece o impacto da realidade virtual no mercado de audiovisual, por expandir os limites da experiência em sala escura. Outros festivais de prestígio ao redor do mundo, como Cannes, Sundance, Tribeca e Toronto, também já organizam mostras similares.

Ricardo Laganaro coloca o Brasil no mapa das produções de realidade virtual

“O Brasil tem hoje a chance de ser protagonista na criação de uma linguagem para esse novo formato”, conta Laganaro, de 40 anos, que é sócio e chefe do departamento de storytelling do estúdio Árvore.

A Árvore nasceu para criar conteúdo destinado ao consumidor final, para ser usado nos dispositivos de VR existentes no mercado, como os da Oculus Rift, HTC Vive e PlayStation.

O estúdio, fundado em 2017, não trabalha para marcas ou agências de publicidade e aposta no mercado global. As experiências imersivas que eles criam são vendidas online para o mundo todo como na loja do PlayStation, por exemplo.

Um dos destaques é o videogame em VR Pixel Ripped, de temática retrô, ambientado nos anos 1980. Trata-se de uma garota que tenta driblar a vigilância da professora para jogar videogame dentro da classe.

Laganaro explora a realidade virtual desde que o segmento ainda estava engatinhando no País. Ele foi o responsável pela experiência imersiva “Cosmos”, que resgata a história do universo em 360 graus no domo do Museu do Amanhã, aberto no Rio de Janeiro em 2015.

Consagrado pela revista Time

Ex-chefe do departamento de 3D da produtora O2 Filmes, de Fernando Meirelles, Laganaro foi um dos primeiros brasileiros a ter o trabalho em VR reconhecido no exterior.

Seu curta-metragem documental “Step to the Line”, rodado em prisão de segurança máxima nos EUA, teve première no Festival de Tribeca de 2017, sendo citado no mesmo ano como uma das cinco melhores experiências de VR para celular pela revista “Time”.

Ele voltou a Tribeca no ano passado como um dos colaboradores da instalação “Objects in Mirror AR Closer Than They Appear”. Também já deu palestras sobre o assunto no South by Southwest (SXSW), na Comic Con Experience (CCXP) e na Assembleia Geral da ONU de 2017. Laganaro ainda faz a curadoria do Voyager, centro de entretenimento de VR inaugurado no ano passado. Já são dois espaços em São Paulo e um, inaugurado há duas semanas, em Curitiba.

Laganaro já deu palestras sobre o assunto no South by Southwest (SXSW), na Comic Con Experience (CCXP) e na Assembleia Geral da ONU de 2017

“A VR já é uma realidade no mercado de entretenimento. Deixou de ser uma tech demo”, diz Laganaro, referindo-se aos modelos de demonstração de tecnologia, os chamados protótipos. “No início, as empresas faziam qualquer coisa só para mostrar como a tecnologia era incrível. Hoje já saímos dessa esfera e entramos no mundo da arte, da criação de conteúdo, que é o que mais me interessa”, acrescenta.

Buscando dar novas cores e texturas às experiências imersivas é que Laganaro concebeu “A Linha” como uma história simples e intimista – longe das propostas mais comuns em VR, de explorar mundos extraordinários. “Usei a lógica dos primeiros curtas da Pixar, em que o foco não caía na animação como forma de espetáculo, mas na emoção. Algo de porte pequeno, mas profundo”, afirma ele.

Dentro do filme

Com narração de Rodrigo Santoro, “A Linha” é uma carta de amor à antiga São Paulo, onde acompanhamos os primeiros flertes entre Pedro e Rosa. Começamos a experiência de 13 minutos sentados no chão, em quarto escuro.

Quando um álbum de fotografias aparece no nosso colo, podemos folheá-lo com o controle que temos na mão, que funciona como um joystick. Quando percebemos que algumas imagens foram arrancadas do álbum, o narrador comenta que “existem memórias que não cabem em uma foto”.

Chave virtual usada durante a produção

Assim que uma chave desenhada na última página do álbum se materializa e começa a voar, nós nos levantamos do chão e a usamos para abrir uma porta. Tudo continua escuro até puxarmos o pingente de um lustre. Com a luz acesa, percebemos que estamos diante de uma maquete de São Paulo, montada sobre balcão de cerca de 1m20 de altura.

Reconhecemos réplicas de prédios simbólicos e acompanhamos o movimento de um bondinho em miniatura. Bonequinhos, como o entregador de jornal Pedro, representam aqui os paulistanos da década de 1940.

Graças às suas pernas articuladas, ele percorre a maquete distribuindo jornal de bicicleta. É nesse caminho que ele costuma roubar uma flor amarela e deixá-la secretamente para a florista Rosa, para quem ainda não teve coragem de se declarar.

“A ideia é usar a interatividade como uma metáfora emocional. Não se trata de ganhar ou perder, como acontece muito nos videogames"

Até que Pedro tenha finalmente coragem de fazê-lo, vamos precisar manipular alguns mecanismos da maquete, que ocupa um espaço de cerca de 3 metros quadrados. “A ideia é usar a interatividade como uma metáfora emocional. Não se trata de ganhar ou perder, como acontece muito nos videogames. São intervenções simples e significativas que vão emocionar quem as realiza”, afirma Laganaro.

Ele lembra que a experiência exige engatinhar por baixo da maquete para ajudar Pedro. Isso acontece quando o boneco cai dela ao se aventurar por outro percurso. “É algo que ninguém espera ter que fazer”, completa ele, com ar de artista satisfeito com a criação.

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