Algumas tecnologias se integram nas nossas vidas. A eletricidade é um exemplo. Não sabemos mais viver sem ela. Nas tecnologias digitais, a internet, o smartphone e as redes sociais já fazem parte do nosso cotidiano.
Os wearables começam também a ganhar espaço. Eu e minha mulher usamos pulseiras que medem alguns dados simples como batimento cardíaco, passos e qualidade do sono. A primeira coisa que faço ao acordar é checar meu sono, consultando o app que mostra quanto do meu sono foi profundo ou leve.
Sei que não é um dado preciso, pois mede apenas o movimento do meu braço durante a noite. Não faz nenhuma correlação com as ondas cerebrais que indicariam com maior precisão o real estado do sono. Mas já é um indicativo que me permite correlacionar aquela noite com fatos do dia anterior, que provavelmente afetaram a qualidade do sono. E qualidade do sono tem influência direta na saúde.
Neste quinto artigo da série, vamos abordar como a inteligência artificial (IA) se integra à saúde mental e física. Comecemos pela saúde mental. Mens sana in corpore sano. Um recente e-book, “Digital Interventions in Mental Health: Current Status and Future Directions” publicado pela Frontiers in Psychiatry mostra claramente o papel da tecnologia digital e da IA nas terapias direcionadas à saúde mental.
Na verdade, as primeiras experimentações ocorreram em 1965, com um primitivo bot, chamado Eliza, que simulava uma sessão de psicoterapia, e que gerou interações muito interessantes. Mais recentemente surgiu um bot muito mais evoluído que tem colaborado na saúde mental.
O artigo “The Chatbot Therapist Will See You Now” mostra que seu propósito não é substituir um psiquiatra, mas pode complementar a sua atividade. Aliás, curioso que uma pesquisa informal com 2.000 pessoas, nos EUA, via Twitter, mostrou que delas 44% se sentiam mais à vontade falando com um computador que com um médico sobre alguma doença ou sintoma embaraçoso.
O uso de chatbots e assistentes virtuais está aumentando e cada vez se assemelham mais a nós na sua capacidade de interação. Isso abre espaço para aumentar a comunicação das pessoas com a medicina.
Um bot ou assistente virtual, interagindo com uma pessoa, não tem as características humanas que um médico possui como empatia ou senso comum, mas pode captar sinais que passam desapercebidos aos médicos. Por exemplo, determinados padrões de variação de voz podem indicar sinais de distúrbios mentais.
Li dois artigos instigantes publicados pela Nature, “Digital biomarkers of mood disorders and symptom change” e “Automated analysis of free speech predicts psychosis onset in high-risk youths”, que mostram que algoritmos de Deep Learning podem ajudar a identificar prováveis casos de surtos psicóticos. Creio que é um campo interessante para a medicina avançar. Fala-se muito no uso de IA para transformar a radiologia ou patologia, mas sua aplicabilidade na saúde mental parece ser bem promissora.
Podemos ir além. Hoje estima-se que via smartphones tira-se mais de 1,2 trilhão de fotos. Uma parcela razoável delas vai para as redes sociais e um estudo “Instagram photos reveal predictive markers of depression” analisou quase 50 mil fotos de 166 indivíduos (que deram consentimento à pesquisa), dos quais 71 tinham histórico de depressão.
Analisando as características das fotos do Instagram, o estudo conseguiu identificar, com 70% de precisão, marcadores digitais de depressão
Analisando as características das fotos, como se a pessoa estava ou não presente, se foi tirada em recinto fechado ou aberto, dia ou noite, efeitos especiais adotados, frequência de postagens e outras variáveis, o estudo conseguiu identificar, com 70% de precisão, marcadores digitais de depressão. Esta precisão se compara favoravelmente à feita por médicos (“Clinical diagnosis of depression in primary care: a meta-analysis”) que em média produzem mais de 50% de falsos positivos no diagnóstico de depressão.
Este estudo foi feito com base em médicos de sistemas de saúde, não por psiquiatras. Mas considerando que a grande maioria da população não consegue ter acesso a um psiquiatra, a IA pode ser uma ferramenta poderosa no combate a doenças mentais.
A depressão é a principal causa de desordem mental. No Brasil, 5,8% da população sofre de depressão, taxa acima da média global, que é de 4,4%. Isso significa que quase 12 milhões de brasileiros sofrem com a doença, colocando o país no topo do ranking no número de casos de depressão na América Latina, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), em pesquisa divulgada no ano passado.
Enquanto no mundo houve uma redução nas mortes por suicídio nos últimos anos, em cerca de 32%, o Brasil segue na contramão desta tendência, tendo registrado, entre 2006 e 2015, um aumento de 24% no número de suicídios cometidos pela população de 10 a 19 anos. O assunto é sério e se a IA pode colaborar neste sentido, creio que devemos evoluir nos estudos de sua aplicabilidade.
Especificamente em suicídios, no Brasil, de acordo com estimativas oficiais do Datasus, foram contabilizadas 195.979 mortes autoprovocadas entre 1996 e 2017. Isso equivale a mais ou menos dois estádios do Maracanã, completamente lotados. Um estudo “O que dizem os números sobre suicídio no Brasil” mostra a gravidade do problema, que aliás, é mundial.
Estimativas apontam que mais de 25 milhões de tentativas de suicídio são feitas anualmente, em todo o mundo. O estudo “Risk Factors for Suicidal Thoughts and Behaviors: A Meta-Analysis of 50 Years of Research” mostra que aplicação de IA pode colaborar em muito na prevenção de suicídios.
De maneira geral, a medicina tem se concentrado muito mais nas doenças físicas que nas mentais. As físicas são mais visíveis e fáceis de tratar. Além disso, as doenças mentais tendem a serem estigmatizadas. Com o uso de IA podemos visualizar um cenário que ajude a quebrar barreiras, inclusive psicológicas.
Primeiro é difícil ter acesso a psiquiatras. Bots podem ajudar a identificar eventuais casos de atenção e direcionar esses casos aos especialistas. Além disso, a amplitude dos marcadores digitais, que podem ir de fotos à variação da voz, é de difícil reconhecimento por nós, humanos. Os algoritmos conseguem detectá-los com bastante precisão. É uma área que merece atenção.
Outra transformação que a tecnologia digital e a IA vão provocar na saúde é o deslocamento do foco na cura da doença, pela manutenção da saúde. Quanto mais saudável for a pessoa e seu sistema imunológico, menos propensão às doenças. Hábitos de vida e alimentação são parte essencial deste processo.
A nossa própria atividade genética depende bastante do nosso controle. Os nossos genes podem nos predispor à obesidade, depressão ou diabetes tipo 2, mas isso é o mesmo que dizer que um piano nos predispõe a tocar errado. Mas, se aprendermos a tocar bem, podemos até ser pianistas virtuosos.
Veremos intercessões cada vez maiores entre healthtechs e foodtechs, uma vez que além de exercícios, a alimentação saudável é essencial. Hipócrates já dizia “Seja o teu alimento o teu medicamento e seja o teu medicamento o teu alimento”. Já está bem consolidado a conscientização que alimentação e saúde estão intimamente correlacionados.
O estudo “Association Between Dietary Factors and Mortality From Heart Disease, Stroke, and Type 2 Diabetes in the United States” mostra com razoável evidência que cerca de um em cada dois óbitos por doenças cardiovasculares ou diabetes foram causados por uma dieta inadequada.
Com base na análise do nosso DNA, podemos chegar próximos de dietas balanceadas de acordo com a resposta metabólica de nosso organismo
A IA pode nos ajudar em muito. Com base na análise do nosso DNA, que tende a cada ano baratear seu custo, podemos chegar razoavelmente próximos de dietas balanceadas de acordo com a resposta metabólica de nosso próprio organismo.
Ainda temos muitas barreiras, até mesmo o desconhecimento de muitos médicos do que fazer com os indicadores dos genes. Por exemplo, em 2018, fiz o sequenciamento do meu DNA para identificar indicadores relativos ao meu metabolismo em relação a alimentos.
A análise mostrou indicadores de propensão à absorção ou não de gordura em excesso, consumo metabólico quando em repouso, metabolismo lipídico e assim por diante. Levei os resultados a dois médicos, que os olharam com atenção, acharam muito interessantes, mas disseram francamente que não sabiam como avaliá-los e me receitaram os exames de sangue tradicionais.
A explicação é simples. As escolas de medicina não conseguem acompanhar a evolução rápida da própria medicina, alavancada pela evolução exponencial das tecnologias digitais e a potencialidade da IA.
As dietas recomendadas muitas vezes não causam efeitos pois cada indivíduo tem metabolismo diferente. O estudo “Personalized Nutrition by Prediction of Glycemic Responses” mostra que os efeitos das dietas devem ser analisados de forma multidimensional, aliado à hábitos de vida e exercícios, idade, peso, qualidade do sono, microbioma do intestino e outros marcadores.
Por isso, o uso de média na população não tem muito sentido para um indivíduo específico. Com uso de tecnologias digitais e IA podemos nos aproximar mais e mais da nutrição personalizada, e quem sabe cheguemos em breve a um ponto onde podemos interagir com nossos smartphones ou wearables e perguntar “Siri, What Should I Eat?”
O resultado é que o uso das tecnologias digitais e da IA pode ajudar a nos mantermos mais saudáveis e consequentemente possibilitar um aumento da longevidade de nossas vidas. Uma empresa, subsidiária do Google, Calico, e diversas outras estão trabalhando nesse propósito. Um artigo “'Extraordinary' Breakthroughs In Anti-Aging Research 'Will Happen Faster Than People Think'” mostra que talvez não seja algo tão distante assim.
O resumo da história é que a IA tem papel importante na nossa sociedade. É uma tecnologia transformadora e como tal tem potencial de transformação, mudando e moldando a própria sociedade. Na medicina, provocando o deslocamento dos paradigmas atuais do que entendemos hoje como medicina, de doença para saúde; de terapêuticas e medicamentos de massa para personalizado; e de atendimento pontual voltado para a cura de doenças para atividade de monitoramento de saúde contínua.
Temos ainda muito que evoluir, mas creio que a cada ano avançamos bem mais que no ano anterior. No próximo e último artigo da série, vamos apresentar algumas perspectivas e uma visão (embora meio especulativa) da medicina do futuro.
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*Cezar Taurion é VP de Inovação da CiaTécnica Consulting, e Partner/Head de Digital Transformation da Kick Corporate Ventures. Membro do conselho de inovação de diversas empresas e mentor e investidor em startups de IA. É autor de nove livros que abordam assuntos como Transformação Digital, Inovação, Big Data e Tecnologias Emergentes. Professor convidado da Fundação Dom Cabral, PUC-RJ e PUC-RS.