Ser uma multinacional com presença em quase todos os países do mundo traz algumas vantagens. Uma delas é aprender com os erros e acertos de suas unidades espalhadas ao redor do mundo.
Nessa crise do novo coronavírus, isso é uma característica extremamente valiosa. A Volkswagen do Brasil está aproveitando os exemplos da China e da Alemanha para planejar o seu retorno. E ele já tem data marcada.
Em entrevista exclusiva ao NeoFeed, o presidente da montadora na América Latina, o executivo argentino Pablo Di Si, diz que a empresa voltará a fabricar no dia 18 de maio.
“O que aprendemos com a Alemanha e com a China, tanto dos países como das operações locais da Volkswagen, é começar de uma forma muito planejada, em ondas”, afirma Di Si.
Ao mesmo tempo em que planeja o retorno, o executivo está trabalhando em outras frentes. Congelou os investimentos por, no mínimo, três meses para proteger o caixa e também está negociando com o governo uma ajuda financeira para toda a cadeia da indústria automobilística.
Será preciso, diz ele, algo entre R$ 30 bilhões e R$ 40 bilhões em linhas de crédito, nos próximos quatro meses, para que não haja o risco de uma quebradeira no setor. “Isso aqui não é um risco da Volkswagen ou de qualquer outra montadora. Isso é um risco sistêmico para toda a cadeia”, afirma.
Mesmo com todas essas questões, a montadora vai lançar ainda neste semestre um novo carro, o Nivus, e também um sistema de infopayment acoplado no veículo. “Continuamos com o nosso planejamento e quem vai definir é o consumidor”, afirma Di Si. Acompanhe a entrevista:
A Volkswagen vinha ganhando mercado nos últimos anos. Como foi e está sendo esse momento?
No mundo antigo, e já não existe mais aquele mundo, o mercado automobilístico no Brasil tinha crescido 21% nos últimos dois anos. Nós, da Volks, tínhamos crescido 52%. Mas esse mundo já não existe mais. Estamos em um novo mundo, muitas coisas vão mudar. O que estamos fazendo agora é preservar o nosso caixa. Estamos no momento de uma crise inédita, nunca vista, e vamos começar a planejar o day after.
O que a empresa está planejando?
Estamos nos preparando para recomeçar o trabalho no mês de maio, de uma forma segura, com a segurança dos nossos funcionários em primeiro lugar. Vamos começar bem devagarzinho. O que aprendemos com a Alemanha e com a China, tanto dos países como das operações locais da Volkswagen, é começar de uma forma muito planejada, em ondas, com um turno de trabalho, com distanciamento e todas aquelas boas práticas de limpeza de maquinários, limpeza de mãos, uso de máscaras. Já temos várias iniciativas e vídeos para os nossos funcionários comunicando como será esse novo mundo quando voltarmos a trabalhar.
Ter fábricas em outros países, principalmente nos mais afetados pela Covid-19, ajudou na criação desses protocolos?
Sim, já temos todos os protocolos e estamos comunicando de todas as formas: escrita, no nosso aplicativo, com vídeos de 1 a 2 minutos e até em gifs. Para você ter uma ideia, estamos mostrando até como as pessoas devem passar pelas catracas na nossa fábrica. É quase intuitivo que a pessoa coloque a mão na catraca. Portanto, estamos mostrando como deve ser. Vamos medir a temperatura de todos os funcionários, de mim até o estagiário. Marcamos no chão de fábrica, no escritório, a distância mínima social. Temos protocolos nos nossos restaurantes. Enfim, uma série de coisas que aprendemos com as operações da Volkswagen lá de fora.
“O mercado automobilístico no Brasil tinha crescido 21% nos últimos dois anos. Nós, da Volks, tínhamos crescido 52%. Mas esse mundo já não existe mais”
Você disse que vai começar devagarzinho, com um turno de produção. Inicialmente, deve representar quanto se comparada a produção de antes do novo coronavírus?
A produção vai no ritmo da demanda. Hoje em dia, não posso te falar qual percentual será em comparação com o mundo antigo. Não sei. Qualquer pessoa que disser que será menos 20%, menos 30% ou menos 40% estará chutando. Prefiro ser mais cauteloso. Posso falar que a nossa velocidade de produção vai acompanhar a demanda do mercado. É a única forma de trabalhar nessa crise.
Quando você acha que as concessionárias voltarão a abrir? Vocês estão trabalhando com qual cenário?
Sempre falo que a data não é importante. É importante ter o protocolo e reagir rápido. Por enquanto, estamos planejando abrir no mês de maio, no dia 18, e, alinhados com os protocolos dos governos de São Paulo e do Paraná, onde temos as fábricas, acredito que as concessionárias vão abrir devagarzinho, para a venda de carros, em meados de maio.
Você diz que o mundo que vivíamos não existe mais e agora é um novo mundo. Que novo mundo seria esse?
Cada um reflete sobre essa crise de diferentes formas. Posso falar alguns insights da China que podem acontecer por aqui e também alguns insights pessoais. Na China, por exemplo, está havendo um boom de venda de carros porque as pessoas estão com receio de pegar transporte público. Veremos o que vai acontecer aqui no Brasil. No campo pessoal, do Pablo, eu estava acostumado a viajar uma vez por mês para a Alemanha. Não estou mais disposto a viajar uma vez por mês para lá e eles também não vão querer que eu viaje para lá uma vez por mês. Na vida profissional e na vida privada, cada um vai refletir de uma forma diferente e fará escolhas diferentes. E, obviamente, vai ter impacto em algumas indústrias a nível mundial. As companhias aéreas, os hotéis, a de carros.
“Na China, por exemplo, está havendo um boom de venda de carros porque as pessoas estão com receio de pegar transporte público”
Você acredita que o mercado de carros no Brasil vai responder da mesma forma que está acontecendo na China? As pessoas comprando mais carros?
Acredito que não. A China é um caso único no mundo. Gostaria que acontecesse aqui no Brasil. Para contextualizar, o mercado automobilístico na China, em janeiro, foi de 1,7 milhão de carros. Em fevereiro, foi de 200 mil carros, em março, 1 milhão de carros, e, em abril, estimamos em 1,4 milhão de carros como indústria. É um caso único que não deve se repetir no Brasil e em nenhuma outra parte do mundo. Acredito que no Brasil haverá um desemprego maior do que na China. E precisamos ver como operar o crédito no Brasil, no segundo semestre, porque nossa indústria depende muito do crédito. É um fator que vai afetar muito a nossa indústria.
Falando nisso, quem deve ser muito afetada é a rede de fornecedores da indústria. O que a Volks está fazendo para proteger essa cadeia?
Desde o primeiro minuto estou falando do problema de liquidez e de caixa em toda a cadeia. E não estou falando da Volkswagen, estou falando dos fornecedores e dos concessionários. Então, estamos conversando com o Ministério da Economia, o BNDES, os bancos privados, de criar algum mecanismo de assistência de liquidez para os fornecedores. Isso aqui não é um risco da Volkswagen ou de qualquer outra montadora. Isso é um risco sistêmico para toda a cadeia. Na Alemanha, o governo injetou liquidez para que a cadeia não quebre. Estou otimista que consigamos chegar num acordo ainda nessa semana de como estruturar com os bancos liderados pelo BNDES. É fundamental ter a liquidez no sistema de uma forma estruturada.
Quanto você acha que é necessário para injetar na cadeia?
Nos próximos três a quatro meses, a cadeia da indústria automobilística nacional precisará entre R$ 30 bilhões e R$ 40 bilhões para capital de giro.
“A cadeia da indústria automobilística nacional precisará entre R$ 30 bilhões e R$ 40 bilhões para capital de giro”
No meio dessa bagunça toda, a Volks vai lançar um carro, o Nivus. Está otimista com a retomada?
Com certeza, temos vários planos de ataque para o day after. Vamos lançar o Nivus e, nesta semana, vamos apresentar o Volkswagen Play, o nosso sistema de infotainment. Continuamos com planejamento, vida normal, e quem vai definir é o consumidor.
Quanto está sendo investido nesse carro?
Com o Nivus, completamos um ciclo de investimentos, nos últimos três anos, de R$ 7 bilhões. Lançamos o Polo, o Virtus, o T-Cross e agora o Nivus. A maior parte do desenvolvimento foi feita aqui no Brasil.
A Volks criou uma plataforma digital para vender carros de porta em porta. O novo coronavírus vai acelerar o uso dessa plataforma?
Com certeza, vai acelerar. Ainda bem que começamos a desenvolver essa ferramenta aqui no Brasil há um ano e meio. Já implementamos em quase todas as concessionárias. O vendedor já tem o seu tablet e os óculos 3D e pode ir na sua casa, no clube, no trabalho, onde o cliente quiser. Acreditamos que esse tipo de iniciativa vai acelerar as nossas vendas num futuro muito próximo.
“Temos vários planos de ataque para o day after. Vamos lançar o Nivus e, nesta semana, vamos apresentar o Volkswagen Play, o nosso sistema de infotainment”
Mesmo assim, até a economia voltar a acelerar vai demorar. Muita gente terá perdido o emprego e muita gente não vai querer comprar carro. O que a Volks pretende fazer para estimular o consumo no chamado day after?
Primeiro, a comunicação será quase toda digital. E precisa dar financiamentos diferenciados para os consumidores. Para alguns carros, teremos uma entrada baixa e a primeira parcela será paga só no início de 2021 ou cinco meses depois da entrada. É fundamental olhar o fluxo de caixa dos consumidores e criar esses financiamentos quase que inéditos no Brasil.
Você tem falado do day after. Você está enxergando aqui no Brasil uma coordenação para o retorno?
Em muitos países está acontecendo. Na Alemanha, eles estão conseguindo. Lá, o governo está fazendo testes na população. Não é obrigatório, mas eles vão na sua casa e perguntam se você quer fazer o teste. Com isso, eles estão pegando dados de quem está imune, de quem não está imune, começando a mapear e buscando uma solução. O planejamento do governo alemão vem em ondas. Podemos aplicar isso no Brasil, mas ainda não temos esse planejamento centralizado e unificado aqui no País.
Você comanda a operação da Volkswagen na América Latina. Quais diferenças está vendo no enfrentamento ao vírus nesses vários países?
Primeiro, as reações dos governos e o preparo da saúde. As restrições na Argentina são muito mais fortes do que aqui porque o presidente Fernández (Alberto Fernández) entendeu, desde o início, a fragilidade do sistema de saúde de lá. A partir do dia 2, ele aplicou ações típicas da Espanha e da Itália. As pessoas não podem sair de casa, se a polícia te vê você vai para a cadeia. Isso está funcionando, mas obviamente isso tem um custo econômico enorme que a Argentina, com certeza, terá de pagar pelos próximos meses e anos. Porém, está protegendo a população da Argentina. No Peru, onde demoraram um pouco para tomar essas decisões, o sistema de saúde entrou em colapso e começaram a tomar decisões mais restritivas num segundo momento. Então, cada país aplicou uma fórmula diferente dependendo de sua cultura e de seu entendimento da gravidade da crise e precisamos respeitar isso. Nós, como Volks, independentemente da ação de cada governo, sempre vamos olhar os funcionários primeiro.
Um dos grandes temores das pessoas e funcionários de empresas é a questão do emprego. Como a Volks está tratando desse tema?
Começamos um processo de negociação com os nossos funcionários e o sindicato. Em linhas gerais, vamos manter os empregos, mas precisamos de ferramentas de flexibilização, como jornadas reduzidas e lay offs.
No início desta entrevista, você falou da importância de preservar o caixa. O que foi feito?
Adotamos muitas medidas. Tomamos algumas linhas de crédito e reduzimos ao máximo a nossa saída de caixa, congelando investimentos. Não cancelando, mas congelando. Congelamos por, no mínimo, três meses os nossos investimentos. Reduzimos também todas as nossas despesas na empresa e temos um comitê de caixa que olha cada despesa que vamos fazer e fiscaliza cada saída de caixa. Somos uma multinacional grande aqui no Brasil, mas estamos operando como um microempreendedor, revisando todas as contas. É fundamental para qualquer empresa, seja pequena, média ou grande, olhar sua liquidez e protegê-la.
“Congelamos por, no mínimo, três meses os nossos investimentos”
Quantos carros a Volkswagen produziu no ano passado?
Produzimos 550 mil carros.
Quanto vai produzir neste ano?
Essa é a pergunta. Vamos ver porque não é só para o mercado brasileiro. Produzimos para o Brasil e para a América Latina. E tínhamos pedidos para produzir para a África. Já tínhamos pedidos para o T-Cross para o continente africano pela primeira vez em nossa história. Nossa produção estará alinhada com a Alemanha, nem mais, nem menos.
Esses pedidos para o continente africano foram cancelados?
Está tudo congelado. Todas as exportações. Planejamos voltar em maio, de uma forma devagar, e temos pedidos da Europa de motores e transmissões que produzimos no Brasil e na Argentina. Não é um grande volume, mas é importante começar devagarzinho a produzir e a exportar.
Qual será o impacto dessa crise da Covid-19 na economia?
Vai ser grande. Não tenho dúvida que vai ter um efeito fiscal em todos os países, um déficit fiscal muito grande. Vai ter impacto nos investimentos na educação, na área social. Os governos estarão mais limitados em termos de orçamentos nos próximos anos. O segundo ponto é a mudança de hábito nos consumidores. Viajaremos mais? Viajaremos menos? Vamos para o trabalho de carro? Faremos mais home office? São perguntas que precisaremos digerir nos próximos meses. Essas mudanças de hábitos vão impactar a economia, tem setores que vão ganhar e outros que vão perder.
Quais lições você tira dessa crise?
Nós como mundo e como indústria estamos totalmente descoordenados. Coisas que são tão simples vão mudar. Vou te dar um exemplo. Produzir respiradores mecânicos não é tão complexo assim. É só ter as especificações, as máquinas. Hoje em dia, está tudo concentrado em outros países, principalmente na China. É muito simples de coordenar e trabalhar com diferentes indústrias que, em caso de necessidade, podem produzir respiradores. Isso é um exemplo. Nós podemos produzir 20% de um respirador, outra montadora outros 30%, outra indústria mais 30% e alguém junta todas essas peças. Esse olhar coletivo não temos nem como indústria, nem como mundo. Acredito que isso vai mudar. Esse pensamento coletivo é o que vai mudar.
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