O chamado inverno tech criou dois mundos para as startups. Em um deles, estão companhias maduras e que captaram centenas de milhões de reais em várias rodadas e que agora sofrem para obter novos investimentos em um frio siberiano. Em outro, a temperatura está mais branda. Nele, estão as startups early stage, que mais do que nunca estão na mira dos investidores.
Um comparativo realizado pela Distrito com dados de janeiro e agosto deste ano e do ano passado mostra que o valor dos cheques entregues a empreendedores que fundaram startups brasileiras em estágios pré-seed e seed aumentou. Em média, as rodadas pré-seed passaram de US$ 350 mil para US$ 788 mil, enquanto os investimentos seed subiram de US$ 1,5 milhão para US$ 2,4 milhões por rodada.
Considerando todos os aportes feitos (dos investimentos-anjo até as rodadas mais avançadas), as startups brasileiras levantam US$ 3,6 bilhões nos primeiros oito meses deste ano, valor que é 45% menor do que os US$ 6,6 bilhões registrados no mesmo período do ano passado. O que, afinal, explica esta disparidade em relação às injeções de capital em startups em fase inicial?
Especialistas no mercado de venture capital consultados pelo NeoFeed apontam diferentes razões para o aumento dos cheques nesta fase inicial das startups. Os motivos envolvem a maior experiência dos fundadores, novas teses de investimento de gestoras que antes só entravam em rounds mais avançados, os custos mais elevados para empreender e até um problema na nomenclatura utilizada para definir os estágios.
Para Natan Sztamfater, cofundador da Aimorés Investimentos e da Profounders, hub para conectar empresários, investidores e outros agentes do mercado, é preciso cautela na hora de classificar os aportes por estágios. “A discussão se tornou saber o que é o early stage”, afirma Sztamfater. “Antes era legal falar que você captava série A e série B, mas isso exige mostrar resultados. No early stage, a cobrança é menor.”
Giancarlo Barone, fundador e CEO da Futurum Capital, é outro que concorda com este argumento. “Os empreendedores estão puxando os investimentos para rodadas anteriores”, afirma. “O que antes era série A, virou seed e o que era seed virou pré-seed.”
De fato, alguns aportes registrados neste ano chamam a atenção para este aspecto, principalmente por conta do valor bem fora da curva. Um deles foi uma rodada seed de US$ 11,5 milhões liderada pela Andreessen Horowitz na operação da Latitud, empresa que se define como um ecossistema de startups.
Em março, no mesmo mês da captação da Latitud, outra startup também levantou mais dinheiro do que o normal para um seed. No caso, foi uma injeção de US$ 6,1 milhões na Kamino, hub financeiro que acelera o lançamento e a aceleração de startups.
Em comum nesses dois exemplos está o fato de que Latitud e Kamino têm entre seus fundadores nomes experientes do mercado: Brian Requarth, que vendeu o VivaReal para a OLX no ano passado, e Benjamin Gleason, um dos fundadores do GuiaBolso, adquirido pelo PicPay também em 2021.
A presença de nomes de peso e que já têm experiência em levantar capital é um dos fatores que pode pesar na hora de captar dinheiro. “São nomes conhecidos e isso gera mais confiança nos investidores”, diz João Brandão, sócio da Bridge One, gestora com foco em startups B2B. “É diferente de um empreendedor que está começando.”
Na época em que captou o aporte, Requarth admitiu em entrevista ao NeoFeed que o valor era mais alto do que o normal para uma rodada seed e considerou sua experiência como um fator que pesou. “Tem o fato de que os fundadores já fizeram parte de projetos que mudaram o mercado”, disse ele. “Os investidores apostam nesta visão e no potencial do time do mercado em que estamos.”
Ainda assim, nomes menos conhecidos do mercado também conseguiram convencer gestoras de peso a apostarem alto em seus negócios que ainda engatinham. A Monashees liderou um pré-seed de US$ 6,7 milhões na insurtech Latú, criada no Brasil pela colombiana Paola Neira. Já a HOF Capital, que já investiu em gigantes como SpaceX e Uber, liderou o seed de US$ 4,3 milhões na Trace Finance, rival da Kamino.
Estes aportes fora da curva ajudam a elevar a média. No mesmo mês em que liderou o pré-seed da Latú, a Monashees também participou de rodadas seed de US$ 10 milhões fintech NG.CASH e de US$ 8,6 milhões da Moises, que opera com um aplicativo voltado para músicos.
A justificativa adotada por empreendedores quando questionados sobre o valor dos cheques é quase que um discurso decorado de que o dinheiro foi aportado em um negócio com grande potencial de crescimento no longo prazo. “(O valor elevado) permite não ficar tão preocupado com a rentabilidade do negócio a curto prazo”, disse Requarth, em março, ao NeoFeed.
O discurso confiante dos empreendedores nem sempre pode representar a realidade. “Às vezes o empreendedor pode achar que a empresa dele realmente vale aquele valor e que tem dinheiro sobrando”, afirma Jorge Steffens, fundador da Oria Capital. “Mas o problema é que se ele gastar aquele dinheiro e fizer uma péssima rodada subsequente, ele pode acabar perdendo o negócio.”
Outro ponto alertado por Steffens é o fato de que os números não trazem um cenário completo. Para o sócio da gestora que, em março deste ano anunciou a captação de seu quarto fundo de investimentos, uma análise mais criteriosa necessitaria saber detalhes das transações. “É preciso ver o que foi negociado, principalmente em termos de diluição e liquidation preference.”
Para Felipe Coelho, sócio da ABSeed, gestora cujo cheque máximo gira em torno de R$ 10 milhões para aportes em que lidera, houve uma mudança no apetite a risco dos fundos. “Alguns fundos podem pagar valores que nem sempre estão correlacionados com a receita e previsibilidade da empresa”, disse. “Depende muito da tese de cada gestora.”
Os especialistas citam também a questão do custo para empreender como um trunfo para a adição desta gordura financeira nos primeiros cheques recebidos pelas startups. “O caminho está mais caro. O salário de vendedores aumentou, além da escassez de desenvolvedores”, afirma Coelho.
Um levantamento feito em setembro pela consultora Robert Half aponta justamente as áreas de vendas e tecnologia como em alta para 2023 e cujas vagas podem ofertar salários mais altos. Profissionais de marketing e engenharia também estão mais concorridos.
A conclusão é que, ao menos para as empresas que estão começando a dar seus primeiros passos, é possível usar uma malha mais fina para enfrentar esse inverno que afeta o mercado de venture capital. O que não mudou, pelo menos, por enquanto, é a mentalidade de que vai ser preciso, lá na frente, entregar resultados mais robustos - e não apenas crescimento.