Momentos de lazer junto às águas do Rio Tietê, a Catedral da Sé em obras, bondes circulando pelo centro da cidade, o despontar dos primeiros grandes edifícios – recortes de uma São Paulo que não existe mais convivem com cenas igualmente históricas, mas ainda hoje recorrentes na paisagem urbana paulistana, como o trabalhador cansado, a criança de rua, os personagens da noite.
A soma dos olhares de sete fotógrafas estrangeiras e judias, impelidas pela ameaça nazista a se aventurarem num novo país, conduz a exposição "Modernas! São Paulo Vista Por Elas", em cartaz até 5 de março de 2023 no Museu Judaico de São Paulo.
Reunidas no mesmo espaço expositivo pela primeira vez, Alice Brill (1920-2013), Claudia Andujar (1931), Gertrudes Altschul (1904-1962), Hildegard Rosenthal (1913-1990), Lily Sverner (1934-2016), Madalena Schwartz (1921-1993) e Stefania Bril (1922-1992) desembarcaram no Brasil entre 1934 e 1950, trazendo na bagagem o repertório de vanguardas modernistas europeias como a Bauhaus (escola de arte e arquitetura fundada por Walter Gropius na Alemanha, em 1919).
“Aqui, elas desenvolveram uma visão humanista, face a face com os fotografados, e uma perspectiva crítica em relação à produção vigente, muito aderida à celebração do progresso, do desenvolvimento e do crescimento”, afirma Ilana Feldman, uma das curadoras da mostra, ao NeoFeed.
“A posição feminina, que é dissidente por princípio, transparece no trabalho dessas sete fotógrafas. Elas se contrapõem à lógica predominante na época, que celebrava a sinfonia das cidades, o trabalho incansável, a máquina de produção.”
Em vez de idealizar a monumentalidade, essas mulheres preferiram explorar o cotidiano e os acontecimentos no nível da rua. “Elas ocuparam profissionalmente o espaço público, naquela época predominantemente masculino”, ressalta Ilana. Se a linguagem de cada uma guarda inúmeros pontos em comum com a das demais, há também singularidades dignas de nota.
“As fotos de Stefania Bril são carregadas de humor ou ironia. Como o táxi que estampa o adesivo ‘este motorista recusa passageiros’, ou a placa de trânsito ‘não passe pela direita’”, observa Ilana, lembrando que a autora da imagem (registrada em 1974, durante o período do regime militar no Brasil) foi obrigada a deixar sua terra natal, a Polônia, por causa das políticas de extermínio colocadas em prática pelo governo expansionista alemão de extrema direita.
“Já Hildegard Rosenthal é mais lírica e Madalena Schwartz aposta nos retratos de figuras da noite, enquanto Claudia Andujar tem um olhar muito atento à população”, prossegue a curadora, que trabalhou lado a lado com a colega Priscyla Gomes não só na escolha dos exemplares como também na interação que surge entre eles a partir da disposição nas paredes e nos brises que fazem as vezes de painéis.
Duas fotos lado a lado de Alice Brill – a de uma estrutura de um prédio em construção repleta de placas de publicidade e a de uma aparentemente precária ponte de madeira – parecem apontar as bases frágeis sobre a qual se ergue a cidade.
O conjunto de Lily Sverner concentra-se em pessoas idosas, ao passo que Gertrudes Altschul ganhou um espaço próprio por ter o portfólio mais destoante de todos, com cliques abstratos e geométricos.
Das 81 obras, 70 foram cedidas pelo Instituto Moreira Salles (IMS), reconhecido por sua atuação na preservação de acervos fotográficos históricos. O material de Gertrudes Altschul veio de uma coleção particular, enquanto dois exemplares de Claudia Andujar constam do catálogo da Galeria Vermelho.
“Foi uma surpresa ver as imagens pessoalmente, pois o processo de curadoria ocorreu todo à distância, por meio de reproduções digitais pequenas”, conta Ilana.
Agora, como se estivesse flanando por uma São Paulo de outrora, o visitante poderá deparar com esses registros tão contundentes quanto delicados – e comprovar a relevância de uma geração de profissionais que ainda persegue o reconhecimento por seu pioneirismo.