Desde que foi implementado em rodovias mundo afora, o free flow – o sistema de pedágio eletrônico, que funciona sem cabines de atendimento ou cancelas para pagamento - sempre foi elogiado pela tecnologia de ponta incorporada para monitorar o tráfego (que inclui scanners 3D, radares, câmeras, leitores de placa e dados processados por inteligência artificial) e pelos benefícios que traz aos motoristas.

Além de reduzir o gasto com combustível e com tempo de viagem, o free flow oferece praticidade de pagar a tarifa de forma virtual, com descontos com uso de tags, em comparação com o modelo de pagamento das praças de pedágio.

O novo sistema de cobrança reduz também os custos de operação das concessionárias, incluindo os funcionários para fazer cobrança e de segurança para administrar o dinheiro arrecadado nas antigas cabines fixas. De quebra, no médio prazo, essa economia se reverte em redução de tarifa.

No Brasil, porém, passados dois anos desde sua implementação, o free flow segue enfrentando resistência. Dois projetos de lei estão tramitando no Congresso Nacional prevendo a suspensão, por 12 meses, das multas por evasão de pedágio aplicadas em pórticos eletrônicos.

Esta semana, um juiz federal concedeu liminar a uma ação impetrada pelo Ministério Público Federal (MPF) de São Paulo suspendendo as multas previstas no sistema de pedágio sem cancela da concessão da Rodovia Presidente Dutra no trecho de Guarulhos, administrado pela Motiva (ex-CCR) – que, por sinal, sequer havia começado a cobrar a tarifa.

Em outra frente, a implementação do pedágio eletrônico por parte do governo paulista em várias rodovias estaduais sob concessão foi suspensa em 12 trechos após protestos e muitas reclamações de prefeitos e políticos de municípios que margeiam estradas que receberiam os pórticos.

Especialistas ouvidos pelo NeoFeed apontam alguns fatores que explicam essa resistência ao novo sistema de pedágio. Desde uma dúvida jurídica sobre a cobrança de multa para quem não paga a tarifa - que fundamenta a liminar concedida pela Justiça Federal em São Paulo -, passando pela desinformação sobre os benefícios do novo sistema e pelo oportunismo de alguns políticos, que usam o free flow como exemplo equivocado de aumento da carga tributária.

Até uma questão cultural tem sido levantada: a percepção de que a quantidade maior de pórticos de cobrança em comparação com o de praças com cabines ao longo de uma rodovia leva o motorista a acreditar que está pagando mais pedágio - embora, na prática, ele pague tarifas menores mais vezes.

A liminar concedida ao MPF reflete várias dessas dúvidas. Um dos argumentos que sustenta o pedido de suspensão de aplicação de multas é a suposta desinformação dos motoristas quanto ao método de cobrança, o que é rebatido pelas concessionárias.

Além da obrigação regulatória de lançar campanhas informativas por um determinado período antes de começar a cobrar a tarifa, concessionárias que adotaram o free flow afirmam que a inadimplência – que costuma ser alta no início de operação – rapidamente cai em poucos meses justamente por causa dessas campanhas, que nunca cessam porque as estradas sempre recebem novos motoristas.

A legislação atual equipara o não pagamento do pedágio à evasão, o que resulta em multa grave, cinco pontos na CNH e cobrança de R$ 200. Na avaliação do MPF, porém, o free flow não pode ser considerado juridicamente um pedágio tradicional, pois a cobrança remunera um serviço de gestão de tráfego e não a conservação da via.

Por isso, a relação entre o motorista e a concessionária deve ser regida pelo Código de Defesa do Consumidor, e não pelas leis de trânsito. “Se o usuário não paga a tarifa, a concessionária tem meios legais de cobrança — como protesto ou negativação —, mas não se justifica impor multa grave e pontos na carteira por um débito de R$ 2”, argumenta o procurador da República, Guilherme Rocha Gopfert, responsável pela ação.

Fundamentação clara

“O modelo free flow é juridicamente viável e regulamentado, mas a recente liminar evidencia que a aplicação da multa pelo não pagamento, quando não acompanhada de fundamentação jurídica clara e de medidas suficientes de comunicação ao usuário, pode ser considerada desproporcional”, adverte Leonardo Moreira, especializado na estruturação jurídica de projetos de infraestrutura e sócio do escritório Ciari Moreira Advogados.

“O fato é que essas contestações judiciais não se dirigem ao modelo de cobrança eletrônico em si, mas a eventuais desajustes na fase de transição, que exigem aperfeiçoamentos na política de informação e segurança jurídica do sistema”, acrescenta.

Danyel Nunes, diretor superintendente da Ecovias Noroeste Paulista - concessionária pioneira do free flow em rodovias paulistas – admite que o desafio das concessionárias não é tecnológico, e sim de informação.

Nunes conta que a implementação de dois pórticos, em 2024, na SP-333,  entre os municípios de Itápolis e Jaboticabal, foi acompanhada de uma grande campanha de comunicação e orientação aos usuários, não só em mídias físicas locais, mas também com imprensa, de rádio e TV e com multiplicadores, influenciadores nas mídias sociais.

“A mudança trazida pelo free flow, de fato, é muito significativa e apesar de ter começado em 2024, ainda existe uma limitação por conta do baixo número de rodovias que dispõem dessa tecnologia”, afirma.

Segundo ele, essa campanha constante resultou em uma redução significativa em mais da metade da taxa de inadimplência dentro do modelo. Nunes destaca que o usuário rapidamente absorveu os benefícios do free flow.

“Oferecemos o desconto automático de 5% da tarifa para tag”, afirma Nunes, citando ainda o DUF (Desconto de Usuário Frequente) progressivo - benefício de pedágio para veículos de passeio que utilizam a tag de cobrança automática.

No caso da Ecovias, a DUF progressiva pode chegar a 96%. “Isso faz com que o usuário pague apenas 4% da tarifa a partir da trigésima passagem no mês pelo pórtico”, afirma Nunes. Até quem quiser pagar em dinheiro, segundo ele, tem à disposição totens de autoatendimento ao longo da rodovia.

Embora o MPF e muitos críticos afirmem que o motorista não está acostumado a usar tags de pagamento, em média, cerca de 85% das transações de pedágio no Brasil já são realizadas através desses dispositivos eletrônicos.

Fernando Gallacci, sócio do escritório Souza Okawa Advogados e especialista em contratos de infraestrutura, concorda que o maior desafio do poder público e das concessionárias é educar os usuários para essa transição de modelo de pedágio.

Segundo ele, trata-se de uma mudança de cultura que precisa ser trabalhada. “O pagamento dessa tarifa não se dá mais lá na boca do caixa, mas sim mediante um sistema de passagem eletrônica e automático, que por vezes exige cadastramento, download de aplicativo, aquisição de tag, etc.", diz.

Gallacci observa que houve ainda uma mudança de lógica na forma como a cobrança de pedágio é feita, o que também deve levar tempo para ser absorvido pelos motoristas. “Se antes havia três praças de pedágio com cabines numa rodovia, agora são cinco pórticos, por exemplo, sendo que tenho valores menores por pórtico para que o motorista pague apenas por quilômetro rodado, contudo, esse motorista tem a percepção de que paga pedágio com mais frequência”, afirma.

Essa mudança de cultura, na visão de Gallaci, são pontos de atenção que explicam essa resistência. Nunes, da Ecovias, concorda. “É essencial um plano regulatório e metodologias de implantação para viabilizar a cobrança por distância e facilitar o convencimento público.”