Desde o início das negociações para um acordo comercial entre Mercosul e União Europeia – e lá se vão 25 anos –, apenas um lado se empenhou de fato, e por razões óbvias. Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, membros fundadores do Mercosul, sempre buscaram acesso ao mercado de cerca de 450 milhões de consumidores dos 27 países da UE, que representam 15% da economia global.
Pressões de setores europeus, especialmente agricultores franceses e espanhóis – que perderam competitividade frente ao agronegócio brasileiro e argentino –, porém, sempre travaram o avanço, impondo barreiras às exportações de carne e soja do Mercosul. Como carta na manga, tinham a exigência de aprovação pelos Parlamentos nacionais e regionais dos Estados-membros da UE.
Na primeira semana de setembro, porém, a Comissão Europeia, o braço executivo da UE, anunciou a adoção de duas propostas acertadas com o Mercosul em dezembro do ano passado: o Acordo de Parceria UE-Mercosul (APEM) e o Acordo Comercial Provisório (ATC).
Nesse entendimento preliminar, os dois blocos se comprometem a eliminar tarifas em mais de 90% do comércio bilateral, gerando economia anual de € 4 bilhões para exportadores europeus. Em troca, o Mercosul terá acesso preferencial ao mercado da UE, especialmente para produtos agrícolas antes barrados.
Para acelerar a aprovação, a Comissão Europeia separou a parte comercial do tratado geral para que ele entre em vigor provisoriamente - sem necessidade de ser ratificado pelos mais de 30 Parlamentos nacionais e regionais dos Estados-membros. Com isso, Bruxelas poderá validar o acordo comercial por maioria qualificada (pelo menos 15 países representando 65% da população) dos Estados-membros, além de maioria do Parlamento Europeu.
Duas razões impulsionaram a mudança de postura da UE. A primeira é a crise econômica que afeta tanto o bloco quanto os países europeus fora da UE. A estagnação, iniciada após a crise financeira global de 2008, agravou-se com a pandemia e a guerra na Ucrânia, afetando o fornecimento e o custo da energia no continente.
Enquanto o PIB global cresceu 2,97% ao ano neste século, o da Europa avançou apenas 1,27%, atrás dos EUA (2,17%) e da China (8,24%). Em 2023, os EUA cresceram 20% em relação ao nível pré-pandemia, enquanto a zona do euro avançou apenas 3%.
O segundo fator foi a chegada ao poder do presidente americano Donald Trump. Suas tarifas sobre parceiros comerciais desestabilizaram o comércio global, prejudicando a UE, que tem nas exportações cerca de 40% do seu PIB - cálculo que inclui as trocas comerciais entre os países do bloco, especialmente de bens e serviços.
Recentemente, o bloco europeu fechou um acordo comercial com os EUA, comemorado apenas por Trump. Além de impor tarifas de 15%, o líder americano obteve concessões sem oferecer contrapartidas.
Duas cláusulas afetam diretamente o acordo com o Mercosul: a eliminação de barreiras à carne bovina e etanol dos EUA, que competirão com os produtos brasileiros, e a promessa europeia de comprar US$ 750 bilhões em energia, sobretudo gás natural liquefeito (GNL), o que pode reduzir a demanda por biocombustíveis do Mercosul.
Alívio para UE
Pressionado pelas tarifas dos EUA e pela superprodução chinesa, que minaram suas exportações, o possível acordo com o Mercosul ganhou uma atratividade inédita para a União Europeia.
Em 2024, as exportações da UE para os quatro países do Mercosul somaram € 53,3 bilhões, com destaque para máquinas e aparelhos (28,1%), produtos químicos e farmacêuticos (25%) e equipamentos de transporte (12,1%).
As maiores exportações do Mercosul para a UE foram produtos agrícolas (42,7%), minerais (30,5%) e celulose e papel (6,8%). O total exportado foi superavitário, chegando a € 57 bilhões, mas o acesso ao mercado de 260 milhões de consumidores do Mercosul compensa o déficit europeu.
“O fato é que o acordo com o Mercosul virou tábua de salvação para a economia da União Europeia”, afirma Daniel Vargas, professor da Escola de Economia da FGV-SP, citando os problemas enfrentados pelo bloco — como estagnação industrial e tecnológica — que o distanciaram de economias como a dos EUA e da China.
“Quem vai comprar os produtos europeus? Na verdade, o Mercosul tem um mercado consumidor ideal para sua produção industrial”, acrescenta Vargas, surpreso com a demora europeia em fechar o acordo.
“Agora, a pressão de Trump e da geopolítica internacional tornaram mais evidente o que parecia óbvio: esse acordo é mais importante para a UE do que para o Mercosul”, diz ele.
Apesar de criar a maior zona de livre-comércio do mundo - 718 milhões de consumidores, com PIB somado de US$ 22 trilhões -, Vargas alerta que a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, negociou cláusulas que podem prejudicar o agronegócio brasileiro.
A UE exigiu salvaguardas para proteger seus agricultores do excesso de produtos do Mercosul. A carne bovina terá quota de 99 mil toneladas com tarifa de 7,5%, o que representa apenas 1,5% da produção europeia. Já a carne de frango será limitada a 180 mil toneladas livres de tarifa, equivalentes a 1,3% produzido pela UE.
“As cláusulas referentes ao agronegócio, impostas pelos europeus, são hostis aos padrões sustentáveis brasileiros, e isso vai ficar claro quando essas cláusulas virarem exigência, as cadeias brasileiras vão sentir”, adverte.
Ele critica a resistência europeia ao conceito brasileiro de uso da terra. “O Brasil tem avançado na redefinição de produzir com sustentabilidade, multiplicando as safras, por exemplo, mas a UE cultiva o maior preconceito em relação a qualquer atividade do campo e sempre teve o Brasil como alvo”, emenda.
Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados, porém, prevê ganhos para a economia brasileira e sul-americana. “Acordos comerciais com países ricos aumentam a produtividade, especialmente industrial, que no caso brasileiro sempre foi baixa”, diz.
Segundo ele, o acordo pode ser uma salvação parcial para a indústria nacional, com acesso a insumos e bens de capital mais baratos, impulsionando exportações.
“A indústria brasileira sempre foi protecionista e pouco competitiva, mas a chegada de produtos europeus sem tarifas vai aumentar a competição e, somada à reforma tributária, nossa indústria pode mudar esse cenário no médio prazo”, observa.
Futuro sombrio
Embora o acordo com o Mercosul possa abrir uma nova frente para melhorar as exportações europeias, a reversão do declínio industrial e econômico ainda é vista com reserva.
A própria Comissão Europeia reconheceu o quadro preocupante ao encomendar, no ano passado, um estudo a Mario Draghi, ex-presidente do Banco Central Europeu e ex-primeiro-ministro da Itália. Ele foi encarregado de analisar os desafios econômicos da UE e propor soluções para fortalecer sua competitividade num cenário global instável.
O chamado “Relatório Draghi” mostrou que a UE enfrenta um declínio econômico e geopolítico, podendo perder sua posição de destaque global. Segundo o estudo, apenas 4 das 50 maiores empresas tecnológicas do mundo estão sediadas no bloco. Muitas startups europeias mudam sua sede para os EUA, revelando fuga de talentos e capital.
Diante disso, Draghi propõe um novo modelo econômico, rompendo com a austeridade fiscal e incentivando grandes investimentos públicos e privados. Ele destaca três áreas prioritárias: inovação tecnológica, transição energética e segurança das cadeias de suprimentos.
O estudo alerta para a necessidade de um plano de investimentos massivo — maior que o Plano Marshall — estimando que a UE precisa investir € 800 bilhões por ano para evitar o declínio e manter relevância global.
Quanto à recuperação econômica, os especialistas ouvidos pelo NeoFeed são céticos. Vargas, da FGV, aponta que o declínio europeu começou com o esgotamento do regime de bem-estar social nas principais economias ocidentais.
“Os setores industriais europeus alavancaram esse crescimento com proteção social, mas os avanços tecnológicos esbarraram no arcabouço burocrático para manter essa proteção de pé, ou seja, a inovação passou a custar mais cara”, diz.
Segundo ele, a substituição da proteção social pela ambiental — como a renúncia à energia nuclear e a dependência do gás importado da Rússia — somada à burocracia, afundou a competitividade europeia.
“O fator Trump, por fim, obrigou a Europa a caminhar com as próprias pernas e isso tem um custo elevadíssimo”, emenda Vargas, citando o fim do modelo social-democrata com vocação ambiental e pouca atenção à segurança. Por exigência do presidente americano, a UE terá que investir até 5% do PIB em defesa para bancar a Otan, a aliança militar EUA-Europa.
Para Vale, da MB Associados, a Europa vive há mais tempo o mesmo drama que outros países desenvolvidos começaram a sentir após a pandemia.
“O problema europeu é fiscal, semelhante ao americano, com situação fiscal ruim na França, Reino Unido e Alemanha”, diz Vale, lembrando que o aumento do gasto militar (de 2% para 5% do PIB) pressiona os orçamentos, levando a cortes sociais e insatisfação popular.
Segundo ele, juros altos e crédito caro prejudicam a produtividade e o crescimento. “A Europa está emparedada por China e EUA, sem muitas alternativas; para o bloco da UE, abrir mercados como o brasileiro é essencial, mesmo com impactos negativos para parte da agricultura local”, assegura.
O chamado fator Trump, com tarifas e incerteza política e social, prejudica ainda a recuperação europeia, mas Vale afirma que neste cenário global, que deixou o mundo perplexo - fiscalmente, moralmente e politicamente -, o Brasil ainda se sai bem.
"Apesar das nossas dificuldades, possuímos ativos importantes e não enfrentamos grandes riscos geopolíticos, estando em uma situação relativamente positiva”, diz Vale. “Não é que a gente melhorou, o mundo é que piorou.”