Com um desfile militar grandioso na quarta-feira, 3 de setembro, a China exibiu mísseis hipersônicos para afundar navios, blindados de última geração e mísseis balísticos com capacidade nuclear que podem atingir o território continental dos Estados Unidos.
Mas o que mais chamou a atenção de especialistas militares ocidentais foram os drones de ataque aéreo, barcos não tripulados e cães-robôs — armas com tecnologia ultramodernas gerenciadas por inteligência artificial (IA) que deverão dominar os conflitos militares do futuro próximo.
A novidade é que boa parte desses armamentos de alta tecnologia envolvendo IA não está sendo desenvolvida pelos militares chineses. São resultado de um conceito criado pelo presidente Xi Jinping conhecido como "fusão civil-militar".
Por trás do conceito há uma estratégia de negócios multimilionária, na qual empresas privadas, universidades civis e outras entidades tradicionalmente não consideradas parte da indústria de defesa chinesa são estimuladas a oferecer inovações tecnológicas baseadas em inteligência artificial para uso militar em troca de contratos.
Um levantamento da Universidade Georgetown, em Washington, que analisou cerca de 3 mil editais de contratos relacionados a IA publicados pelo Exército de Libertação Popular (ELP) chinês em 2023 e 2024, indica que 85% dos vencedores das licitações eram compostos por entidades fora do complexo industrial-militar chinês. A grande maioria não está sujeita a sanções dos EUA.
O levantamento foi citado pelo jornal americano The Wall Street Journal, que fez uma ampla reportagem sobre a "fusão civil-militar" chinesa.
“Especialmente em uma área como de IA, os militares não estão na vanguarda”, afirma Alex Joske, um analista da China baseado na Austrália que estudou como as empresas privadas e universidades chinesas trabalham com Exército. “Eles realmente fizeram muito progresso na redução das barreiras para que o setor civil contribuísse para as necessidades da defesa.”
Entre os casos obtidos pelo levantamento da Universidade Georgetown está o da empresa Sichuan Tengden Sci-Tech Innovation, fabricante do TB-001 "Twin-Tailed Scorpion", um drone de ataque pesado avistado nos últimos anos voando perto de Okinawa e Taiwan. Fundada em 2016, a empresa conquistou sete contratos, a maioria para aluguel de drones e testes de voo.
A maior vencedora de licitações, a iFlytek Digital, assinou 20 contratos com o Exército chinês envolvendo processamento e análise de dados. Também chamou a atenção o apetite da Universidade Jiao Tong, de Xangai, que assinou setes contratos para desenvolver ou manter sistemas relacionados à IA.
O primeiro deles, a convite do Exército chinês, surgiu seis dias após pesquisadores da universidade divulgarem um estudo, em janeiro do ano passado, no qual mostram como a inteligência artificial poderia ser usada para implantar sistemas de armas em "teias de destruição" automatizadas que se ajustariam em tempo real às mudanças no campo de batalha durante o combate no mar.
Alerta nos EUA
Os resultados da "fusão civil-militar" chinesa ligaram um sinal de alerta nos EUA. Nos últimos anos, especialistas militares e integrantes do setor tecnológico ligado a IA vêm advertindo para a possibilidade de a China de desenvolver tecnologias que possam dar às suas forças militares uma vantagem sobre as forças americanas.
“Só com esse conjunto de dados, a ambição do que eles estão tentando fazer é surpreendente”, diz Cole McFaul, analista sênior de pesquisa do Centro de Segurança e Tecnologias Emergentes de Georgetown, que ajudou a coletar os dados. “O fato de haver uma gama tão ampla dessas tecnologias demonstra na capacidade limitada dos EUA de realmente prejudicar ou restringir a modernização militar da China.”
Como a maior parte dos projetos envolve empresas privadas, a necessidade de ampliar investigações visando a imposição de sanções trouxe uma preocupação a mais no complexo relacionamento China-EUA referente a chips, semicondutores e tecnologia voltada para IA.
Mais do que dificultar o acesso chinês à alta tecnologia, dois empresários de peso do Vale do Silício vêm defendendo uma reação coordenada dos Estados Unidos, sob risco de o país ficar para trás militarmente sem uma estratégia mais coerente.
Eric Schmidt, ex-CEO do Google que presidiu a Comissão de Segurança Nacional dos EUA sobre Inteligência Artificial, observa que, inicialmente, os EUA estavam dois a três anos à frente da China em IA, mas agora reconhece que o rápido desenvolvimento e a relação custo-benefício do DeepSeek desafiam essa suposição.
“O surgimento do DeepSeek deve ser visto como um ponto de virada no cenário global de IA, revelando as crescentes capacidades da China”, afirma Schmidt.
Outro empreendedor do Vale do Silício, Alex Karp, acredita que a corrida armamentista global em inteligência artificial entre os Estados Unidos e a China culminará com um país ultrapassando decisivamente o outro.
“Meu preconceito geral sobre a IA é que ela é perigosa; há consequências positivas e negativas, ou nós vencemos ou a China vencerá”, avisa Karp, CEO da Palantir - empresa de software criada em 2003 com ajuda da CIA que tem como principal cliente o Pentágono, utilizando big data para ajudar a combater o terrorismo e outras ameaças à segurança dos Estados Unidos.
Defensor ferrenho da superioridade tecnológica dos EUA, Karp vem enfatizando repetidamente a necessidade de um “esforço de todo o país” para desenvolver sistemas de IA mais avançados - que, a rigor, não foge dos princípios básicos do conceito de "fusão civil-militar" chinês.
Karp lançou em maio o livro A República Tecnológica: Tecnologia, política e o futuro do Ocidente (Editora Instrínseca), em parceria com Nicholas W. Zamiska, no qual afirma que o domínio dos EUA em IA é vital tanto para os interesses econômicos quanto para a segurança nacional.
Por isso, os EUA e países aliados deveriam lançar um novo Projeto Manhatan, reproduzindo a aliança de cientistas com o Pentágono durante a Segunda Guerra, que geraram, além da bomba atômica idealizada pelo físico americano J. Robert Oppenheimer, todas as inovações tecnológicas que deram supremacia aos EUA, como a criação da Nasa, da internet e do GPS.
Karp, porém, reconhece a dificuldade de reproduzir o que seria, em tese, uma “fusão civil-militar” americana. No livro, os autores citam casos nos últimos anos de gigantes tech, como Google e Microsoft, que recuaram de contratos com o Pentágono por pressão de seus cientistas e funcionários, que não queriam ver avanços digitais empregados em soluções militares.
“A chegada da inteligência artificial no campo de batalha é essencial para mudar essa visão atual da sociedade”, defende Karp no livro.