A trajetória de queda consistente da inflação, o mercado de trabalho resiliente, o câmbio apreciado, a diminuição do risco fiscal, o crescimento do PIB e o início do ciclo de queda de juros pelo Banco Central são as boas perspectivas para a economia no segundo semestre, segundo Fernando Honorato, economista-chefe do Bradesco.

Mas Honorato tem um senão: esse cenário deveria, em tese, ajudar na aprovação do arcabouço fiscal e da reforma tributária, mas as disputas políticas do governo no Congresso Nacional podem emperrar esse processo.

“Vamos falar muito de articulação política neste segundo semestre, ou seja, não vai ser a economia que vai atrapalhar o governo a aprovar essas medidas”, diz Honorato em entrevista exclusiva ao NeoFeed.

O economista faz uma análise minuciosa da reversão do processo de inflação e a importância de o governo perseguir a meta de zerar o déficit em 2024 para não interromper a trajetória de queda dos juros pelo BC.

“A queda dos juros, por si só, não vai resolver. O governo precisa avançar com agenda fiscal para melhorar o processo”, adverte, apontando uma dificuldade extra para a aprovação do arcabouço e da reforma tributária: um Congresso mais forte politicamente do que nos governos anteriores petistas.

Segundo ele, o governo precisa de mais receitas e tem pouco espaço para aumentar impostos – o Congresso vetaria – e, por isso, deverá apostar num crescimento alto do PIB, de 2,5%, contra previsão de 1,3% do mercado. “À medida que o tempo for passando, com as iniciativas de arrecadação andando e a economia crescendo mais, tem espaço para atingir a meta. O ônus da prova está do lado governo”, diz ele.

Honorato também analisa o ciclo de inflação e juros no Primeiro Mundo, que ele atribui “ao maior experimento de expansão monetária e fiscal simultânea desde a Segunda Guerra, por causa da pandemia”.

O economista acredita num fim próximo desse ciclo, sem recessão. “Parte do pouso suave tem menos a ver com a credibilidade da política monetária dos bancos centrais e mais com a dissipação dos choques, como do preço dos alimentos”, diz.

A seguir, os principais trechos da entrevista de Fernando Honorato ao NeoFeed:

Após um início de governo tumultuado, a economia começou a se recuperar. Quais são os fatores para essa melhora do quadro macroeconômico?
Como previmos no final do ano passado, a surpresa foi o agronegócio. Não só o impacto no PIB como o efeito na renda. Como as commodities ainda estavam desvalorizadas, acabou espalhando renda na economia e manteve o crescimento maior do PIB do que todos imaginavam. Tem um segundo componente, que ninguém sabe explicar direito e que ocorreu em vários países, que é a resiliência do mercado de trabalho, ou seja, o processo de conseguir desinflacionar a economia global sem aumentar o desemprego.

Há outros fatores que explicam a recuperação no primeiro semestre?
A resiliência da economia é uma combinação de efeitos defasados das reformas que foram feitas. No caso do mercado de trabalho, por exemplo, parece nítido que a reforma trabalhista ajudou, assim como a reforma da previdência, o que fez com que aumentasse a oferta de trabalho com os efeitos ainda defasados da pandemia – tinha demanda reprimida por serviços, viagens –, com alguma poupança residual, principalmente nas faixas de renda mais altas. Além disso, tem o quadro da história política de 2023.

"A resiliência da economia é uma combinação de efeitos defasados das reformas que foram feitas"

Qual quadro você se refere?
O governo começa com dúvidas sobre as regras do jogo fiscal, inflação alta e questionamento sobre a atividade. Havia um temor de que se a economia tivesse um desempenho muito fraco e que o governo pudesse acelerar medidas de expansão de gastos que iam levar a uma piora dos mercados e dos ativos. O fato é que esses riscos não se materializaram. O risco fiscal, por conta do arcabouço, diminuiu bastante, e o de inflação reduziu aqui e no mundo.

A queda da inflação foi maior do que se imaginava?
À medida que esses riscos diminuíram, aconteceu um fenômeno importante nos último cinco meses que foi a apreciação da moeda. O real saiu de R$ 5,40 e R$ 5,50 para algo entre R$ 4,70 e R$ 4,80, como temos visto. Parte da inflação tem a ver com o mundo. As commodities caíram de preço e, com o câmbio apreciando, o mesmo ocorreu com os bens industriais. Mas o componente mais decisivo foi a alimentação.

A política monetária também ajudou?
Ajudou porque fez com que tivéssemos a expectativa de inflação e da meta melhorando. Mas acho que foi importante nesse processo de apreciação do câmbio. O juro alto ajudou a trazer o câmbio para baixo e a segurar os preços dos bens industriais, uma vez que tudo que dependesse de crédito sofresse um pouco mais. Vimos isso claramente nos dados do varejo e da indústria.

"O juro alto ajudou a trazer o câmbio para baixo e a segurar os preços dos bens industriais"

O IPCA de julho teve uma alta de 0,12%, deixando a inflação anual em 3,99%. Esse aumento preocupa para o resto do ano?
Essa alta de julho já estava precificada pelo mercado. O índice anunciado foi maior do que estávamos esperando (0,05%), mas foi especificamente por causa de automóveis, em cima daquele programa de descontos do governo. Mas a parte que depende mais do ciclo da economia continua desacelerando. Então, não preocupa.

O Banco Central demorou para dar início ao ciclo da queda de juros?
Passamos por dois momentos intensos da economia. O primeiro foi a queda lá atrás da Selic para 2%. Aos olhos de hoje, foi um corte que trouxe mais inflação e desvalorização cambial do que deveria. O segundo momento, quando o juro chegou aos 13,75%. De certa forma, houve uma tentativa de compensar aquela queda para 2%. Assim, os dois extremos surpreenderam.

Os juros precisavam chegar aos 13,75%?
Só o tempo vai dizer. Talvez o BC não precisasse chegar nos 13,75% de juros e parado um pouco antes. Mas, quando chegou, seguiu o roteiro padrão: espera a expectativa de inflação cair, e estava naquele debate da confirmação ou não da meta em 3%. Depois, foi aguardar o câmbio mais apreciado antes de iniciar o corte.

Quando começaremos a ver de forma mais clara o efeito dessa queda dos juros?
O resultado padrão leva de seis a nove meses para acontecer, ou seja, na virada entre o fim do primeiro trimestre e o começo do segundo do ano que vem. Tem um efeito imediato que é a dívida das grandes empresas, normalmente pós-fixadas. Emitem dívidas em CDI+, então pagam o juro mais um prêmio. E tem também outros canais que se completam.

Quais?
A grande discussão hoje no Brasil é em torno da dívida pública – se o governo vai ou não entregar os R$ 130 bilhões que precisa para zerar o déficit no ano que vem. Os juros podem acelerar o processo de percepção positiva do Brasil quanto mais o governo acelerar nessa arrecadação com crescimento do PIB. Mas é importante ressaltar: o juro, por si só, não vai resolver. É preciso avançar com a agenda fiscal para melhorar o processo.

À parte fatores políticos, o cenário macroeconômico tende a ajudar na aprovação do arcabouço e da reforma tributária no Congresso?
O cenário macroeconômico ajuda bastante na aprovação. O desemprego não deve subir muito, não vai ser um tema que vai ocupar as discussões. A inflação tende a continuar bem comportada, o que ajuda na popularidade do governo e isso vira capital político necessário para negociar. O dólar também deve continuar onde está.

"A inflação tende a continuar bem comportada, o que ajuda na popularidade do governo e isso vira capital político"

Então, os chamados “fatores políticos” podem atrapalhar a agenda do governo?
Sim, vamos gastar mais tempo no segundo semestre olhando para as articulações políticas do que para a economia como indicador do que vai avançar com os temas fiscais. Um governo mais forte, com uma boa articulação política, consegue levar adiante mais rápido essa agenda. E tem, claro, o desejo do governo: se quiser gastar mais, alterar o marco fiscal, isso tem potenciais impactos no mercado.

E como fica a articulação com o Congresso?
O Congresso é muito pragmático, vai sentir o faro desses movimentos. Se o governo quiser gastar mais e isso mexer nos preços do câmbio ou no índice da Bolsa, o Congresso pode recuar, não aprovando as medidas do governo. Vamos falar muito de articulação política nesse segundo semestre. Ou seja, não vai ser a economia que vai atrapalhar o governo.

É possível zerar o déficit público em 2024?
É factível, mas não será fácil. Nossa projeção, por enquanto, é de -0,7%. Enquanto as medidas não forem aprovadas é difícil prever se atingirá a meta. O Congresso, por seu lado, se mostra bastante resistente em aumentar impostos. O governo, porém, conta com outro elemento para atingir a meta que é o crescimento econômico. Aí temos divergência com o mercado.

Qual é essa divergência?
O governo aposta que a economia possa crescer próximo de 2,5%, mais do que de 1,5% ou 1,3% do PIB, como estima o Boletim Focus. À medida que o tempo for passando, com as iniciativas de arrecadação andando e a economia crescendo mais, tem espaço para atingir a meta. O ônus da prova está do lado governo.

E quanto à reforma tributária?
As exceções que apareceram do projeto original mais atrapalham do que ajudam. Ocorre que a força do governo no Congresso é diferente daquela que o presidente Lula estava habituado. Antes, as nomeações de ministérios eram suficientes para ter apoio do Congresso. Hoje, o Congresso tem mais poder político pelo orçamento. Precisamos de muita atenção às exceções que estão sendo incorporadas no Congresso. Mesmo que o acréscimo de exceções gere um “modelo Frankenstein”, desfigurado, ainda assim teremos o benefício da redução de burocracia. O saldo é positivo. O problema é perder a chance de fazer a grande reforma.

"A força do governo no Congresso é diferente daquela que o presidente Lula estava habituado"

Essa projeção do IVA com alíquota de 0,24% preocupa?
Preocupa e exige atenção. Causa preocupação o fato de as pessoas ficarem chocadas com a alíquota do IVA, independentemente das exceções. A alíquota sobre consumo será alta porque o país gasta demais e o governo precisa arrecadar. Está ficando transparente para a sociedade o quanto a gente paga de imposto de consumo. Vai ser uma das maiores alíquotas de IVA do mundo, pois temos uma carga tributária disfarçada. Quem sabe essa reforma seja um fato catalisador para discutirmos uma redução num prazo razoável dos gastos em relação ao PIB.

O ciclo de inflação e juros também atingiu Estados Unidos e Europa. Até quando o Primeiro Mundo vai conviver com essa turbulência?
Interessante notar que o mundo produziu o maior experimento de expansão monetária e fiscal simultânea desde a Segunda Guerra por causa da pandemia. Aí eles descobriram que isso geraria inflação. É fácil dizer isso hoje, talvez fizéssemos exatamente o mesmo. Esse experimento demorou muito para ser revertido. Talvez o grande erro de política econômica não foi tanto na ida, mas na volta.

Em que sentido?
Em algum momento ficou claro que os governos iam gastar muito e os bancos centrais ficaram só olhando porque as economias estavam fechadas. Ou seja, como não havia inflação, os juros poderiam continuar baixos. Quando a economia reabriu foi o deus-nos-acuda de inflação. Houve um aperto sincronizado no mundo. A política fiscal voltou menos que a monetária, mas voltou um pouco. Vejo os EUA próximos do fim do ciclo de juros altos, conseguindo chamado pouso suave. Parte do pouso suave tem menos a ver com a credibilidade da política monetária dos bancos centrais e mais com a dissipação dos choques, como do preço dos alimentos. Se não houvesse essa dissipação, teriam de aumentar os juros para controlar a inflação.

"Vejo os EUA próximos do fim do ciclo de juros altos, conseguindo chamado pouso suave"

A China virou um caso à parte, com baixo consumo e deflação. Até que ponto seu baixo crescimento pode atrapalhar a recuperação econômica do Ocidente?
A China ainda não encontrou o modelo de crescimento econômico que tem procurado. Saiu de um país que durante décadas visava muito mais o setor externo, que teve um boom a partir de 2002 no comércio global, e de repente se viu numa transição para uma economia mais doméstica, voltada para serviços, o que é muito mais difícil de crescer.

Qual é o impacto para o Brasil?
Essa dificuldade de achar o modelo econômico ideal acaba impactando positivamente, porque a parte da economia chinesa que está demandado consumo doméstico é justamente a de alimentação, de proteínas e grãos, nossas principais exportações para lá.

E para o resto do mundo?
Essa aspiração chinesa de se tornar de líder mundial de tecnologia, essa disputa com os Estados Unidos, tem a ver com a falta de ter um motor de crescimento mais claro. É um fator de preocupação, mas não vejo a China envolta numa crise severa. Tem muitos mecanismos de autofinanciamento de sua dívida. Pode ter efeito de quanto o mundo vai crescer e no preço das commodities, mas o processo chinês de desaceleração é tradicional. Onde tem risco maior é na disputa geopolítica global. Disso, sim, vamos falar muito nos próximos anos.