A inflação alta não é privilégio de nenhum país. É uma questão global e que impõe desafios aos bancos centrais de todos os países que buscam a convergência para as metas. Inclusive, no Brasil. Para David Beker, chefe de economia no Brasil e de estratégia para a América Latina do Bank of America (BofA), levar a inflação na meta de 2023 é impossível.
Em entrevista ao NeoFeed, Beker pondera que a demora do Fed em elevar o juro instaurou intensa pressão na inflação global e sobre os bancos centrais de países emergentes. Por estar bem adiantado no ciclo de aperto monetário, o Brasil é um dos poucos países que pagam juro superior a 1% ao mês na renda fixa. Mas isso tem consequências para o próprio mercado.
Uma delas é a sangria que está acontecendo em fundos de renda variável. “Dos fundos de ações, as saídas são de R$ 1 bilhão a R$ 2 bilhões por semana. Nos multimercados, os resgates rondam R$ 5 bilhões também por semana. E há várias semanas”, diz Beker.
Nada disso, no entanto, tira o interesse do investidor estrangeiro para investir no Brasil. E mais: num contexto relativo, o país está bem na foto. O economista do BofA entende que o Brasil tem ruído fiscal no curto prazo com as medidas anunciadas pelo governo. Mas, avalia, no período pós-pandemia, o fiscal do Brasil foi melhor do que o de outros países.
Beker afirma ainda que a eleição gera incerteza, mas não trava os negócios. “Os estrangeiros são pragmáticos. E, ao contrário do que se viu na América Latina, os dois candidatos que lideram as pesquisas de opinião – Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro – são conhecidos.”
Acompanhe os principais trechos da entrevista:
A inflação domina discussões no mundo inteiro. Os esforços do Brasil estão na direção correta?
As mensagens endereçadas pelo Banco Central indicam que ele está olhando mais adiante e que há dificuldade de convergência da inflação para as metas. Mas isso não é só aqui. Acontece no mundo inteiro. Agora, querer convergir a inflação para o centro da meta em 2023 é uma tarefa impossível, a não ser que ocorra algum choque que faça com que alguns preços venham a despencar. E isso não parece muito provável. Vamos ter um processo de desinflação, mas não vamos conseguir nos aproximar da meta que está distante e o retorno dos preços vai demorar para acontecer.
"Querer convergir a inflação para o centro da meta em 2023 é uma tarefa impossível, a não ser que ocorra algum choque que faça com que alguns preços venham a despencar"
É possível dissociar o Brasil das demais economias hoje?
Quem acompanha o Brasil fica obcecado em querer explicar o que está acontecendo aqui por fatores domésticos, mas não dá. A maior parte das pressões que observamos vem de fatores condicionantes externos. E a ideia de que o Banco Central do Brasil não está conseguindo conter a inflação é equivocada, no sentido de que a inflação em alta está disseminada no mundo e em economias que nunca viveram essa realidade. Brincamos aqui no banco que nós, da América Latina, viemos do futuro porque vivemos há muito tempo os problemas hoje enfrentados por outras economias. Infelizmente.
Nem os políticos estão escapando de discussões sobre inflação...
Interessante notar que os políticos, no mundo, estão avaliando o que tem mais custo para aprovação popular ou para o resultado de eleições. O que pesa mais (e contra) é a atividade fraca ou a inflação alta? E os dois cenários pesam. Mas aprendemos, aqui na América Latina, que a inflação tem um custo gigantesco para a parcela mais pobre da população que simplesmente não consegue comprar os bens essenciais para sobrevivência. Aprendemos que não se pode brincar com a inflação.
Como chegamos até aqui?
O fato de o Federal Reserve (Fed), o BC dos EUA, ter demorado tanto para subir a taxa de juros colocou uma pressão intensa na inflação global e uma pressão violenta nos bancos centrais de economias emergentes que tiveram que atuar por bastante tempo sozinhos. No combate à inflação, o Fed entrou em campo só recentemente e o ambiente se tornou muito desafiador. A economia global vai desacelerar e essa é uma mudança importante porque a última década foi de juros baixos e taxas de crescimento razoáveis. Nossa projeção para os EUA é de expansão do PIB de 2,3% este ano e 1,4% no próximo. Teremos juros bem mais altos e essa condição sobe a régua e a diligência por fundamentos sólidos nas diversas economias. E o cenário se complica, sobretudo para as economias emergentes, quando o juro americano avança.
Quais são as projeções do BofA para os juros americanos?
No momento, projetamos juros nos EUA entre 3,25% e 3,50% neste ano e entre 4% e 4,25% em 2023, mas com viés de alta. O risco é para mais. Meses atrás, quando nosso economista global falava sobre aumentos de juros pelo Fed de 0,25 ponto, todo mundo achava que ele estava louco. E logo ficou claro que o juro precisaria subir muito mais. Tanto que o Fed elevou sua taxa em 0,75 ponto na reunião de política monetária de junho. E precisará subir mais porque a inflação não é trivial.
O Banco Central (BC) deve elevar ainda mais a Selic?
Projetamos mais uma alta de 0,50 ponto percentual na Selic, para 13,75% no fim do ciclo. E esperamos queda para 10,50% até o final de 2023. Mas a reversão da taxa não será um processo fácil porque ainda estaremos com a inflação distante do centro da meta e o Fed estará subindo sua taxa. Esses dois movimentos tornarão a redução do juro desafiadora. Veremos, sim, alguma redução de juro aqui, mas depende também do cenário doméstico, inclusive, do processo eleitoral.
Qual é o efeito da forte alta do juro no Brasil? A Selic sobe há mais de um ano.
Embora a gente reconheça que o “novo normal” no Brasil não é juro de dois dígitos, o juro terá que ficar em dois dígitos por algum tempo e isso é uma mudança significativa para o Brasil que, há pouco mais de um ano, estava com Selic a 2%. A Selic neste nível, combinada a uma farta liquidez no mundo, levou a uma transformação importante na indústria de fundos no Brasil. Tivemos um “boom” de IPOs. Agora não temos essas ofertas e vemos muita saída de recursos de fundos domésticos. Dos fundos de ações domésticos, observamos saídas de R$ 1 bilhão a R$ 2 bilhões por semana e dos multimercados retiradas em torno de R$ 5 bilhões também por semana. E há várias semanas.
"Embora a gente reconheça que o 'novo normal' no Brasil não é juro de dois dígitos, o juro terá que ficar em dois dígitos por algum tempo"
Qual a justificativa para esse movimento nos fundos de investimento e para onde está indo o dinheiro?
A justificativa é o juro mais alto. Bem mais alto. E os recursos estão indo para a renda fixa ou para consumo. A pessoa física consegue estacionar o dinheiro num CDB ou em qualquer outro produto de renda fixa e ganhar mais de 1% ao mês. É uma taxa importante. O Brasil é um dos poucos países no mundo em que o investidor consegue ter um retorno acima da inflação. Na maioria dos países, as pessoas estão tendo uma dificuldade violenta para se proteger da inflação. Aqui, pessoas físicas também estão sendo levadas a desinvestir ou a despoupar para compor os orçamentos domésticos e sobreviver neste ambiente de inflação mais elevada.
Os investidores estrangeiros continuam interessados no Brasil?
Muito. Estive na Europa e visitei mais de 30 investidores institucionais e o interesse se confirma. E o que ajuda o Brasil é o contexto relativo em relação a outros países ou mercados. Em termos absolutos, para quem conhece o Brasil, temos as preocupações de sempre, sobretudo, a questão fiscal. Mas o que ouvimos dos investidores é que eles não têm alternativas em mercados emergentes para investimentos. Muita gente não quer estar próxima do conflito Rússia e Ucrânia, portanto prefere não manter a Europa emergente no portfólio e aqui também temos juros.
Podemos dizer que o Brasil está bem na foto?
O Brasil está adiantado no ciclo de aumento de juros comparado com todos os países. E a questão fiscal é sem dúvida uma preocupação do mercado, mas, no período pós-pandemia, o fiscal do Brasil foi melhor do que o de outros países emergentes. E quanto à eleição, a visão do estrangeiro é muito pragmática. Ao contrário de outras eleições na América Latina, onde tivemos vitórias de candidatos desconhecidos do mercado, no Brasil os dois candidatos que estão liderando as pesquisas de intenção de voto para o pleito de outubro são conhecidos.
A eleição de outubro não preocupa?
É óbvio que existem incertezas quanto às políticas que serão implementadas, mas não há o efeito surpresa de, de repente, estar concorrendo alguém sobre quem o investidor não tem a menor ideia de quem seja. Já se tem ideia sobre os candidatos concorrentes. Então, os estrangeiros olham para o processo eleitoral no Brasil e não estão, neste momento, preocupados. Talvez porque ainda estamos distantes de outubro.
"O que ouvimos dos investidores é que eles não têm alternativas em mercados emergentes para investimentos"
A sucessão presidencial está sendo relevada pelo mercado?
A eleição e a sucessão sempre geram preocupação porque a incerteza gera preocupação, mas não temos, neste momento, os elementos para reduzir as incertezas. E esses elementos só teremos ao longo do tempo. Por exemplo: quem será o próximo ministro da Economia? Quais são os planos setoriais específicos? Isso a gente não tem. Vamos ter que esperar para ver.
As medidas recentes anunciadas pelo governo, incluídas na PEC dos Combustíveis, aumentam as preocupações com a política fiscal?
A questão fiscal no curto prazo está melhor, inclusive, que a de outros emergentes. Tivemos queda na relação dívida/PIB no ano passado e alcançamos superávit primário, o que foi surpreendente. As medidas recentes poderão, sim, deteriorar a política fiscal no curto prazo. E é fato que o quadro é de inflação mais alta, mas a atividade econômica também está melhor que o esperado. Há alguns meses, eu era apontado como ‘o otimista’ porque projetava expansão do PIB em 0,5% para este ano. Agora projetamos 1,5%. O mercado está próximo desse resultado porque também promoveu revisões. E esse crescimento mais forte está ajudando na arrecadação.
E a perspectiva fiscal de médio e longo prazo?
No curto prazo, o cenário fiscal piora com as medidas recentes. Mas precisamos saber qual é a política fiscal do próximo presidente. Interessa saber o que vai acontecer com o teto de gastos. Portanto, temos um ruído de curto prazo que não podemos menosprezar, mas a visão estrutural da política fiscal depende muito mais das eleições e do plano do próximo governo. O que vai acontecer com o teto de gastos? Ninguém sabe.
E quanto à sustentabilidade fiscal?
Precisamos saber quais são os planos do futuro governo. Hoje não sabemos o que vai ser feito. Nem em um campo e nem no outro. As pessoas olham para a renda fixa e a parte longa da curva de juros no país é afetada por essa incerteza fiscal, enquanto a parte curta da curva de juros reage, claro, ao ruído fiscal de curto prazo, mas reflete, principalmente, as apostas nas ações do Banco Central quanto ao ciclo de aperto monetário. Há uma distinção de “trades”. No curto prazo, é de aposta que o BC em breve para de subir os juros. O longo prazo sofre contaminação das discussões sobre a política partidária e a política fiscal que teremos a partir de 2023.
Essas preocupações ou incertezas travam os negócios?
Não, não travam. E o fato de o estrangeiro ter uma visão diferenciada do Brasil como oportunidade de investimento acaba nos ajudando.