O setor de saneamento, que desde a aprovação do marco regulatório do setor, em 2020, contabilizou mais de R$ 75 bilhões em investimentos por empresas privadas e estatais em cerca de 225 municípios brasileiros, continua sendo alvo de investidas no Congresso Nacional, com apoio do governo federal, para esvaziar os poderes da ANA (Agência Nacional de Águas), o órgão regulador da área.

Desta vez, o ataque veio em duas frentes. A primeira fracassou nesta terça-feira, 23 de maio. Um “jabuti” (emenda inserida numa proposta legislativa sem relação com o objetivo original da lei) incluído na Medida Provisória 1154, que estabelece a criação de vários ministérios e deve ser votada até 1º de junho, de autoria do senador Eduardo Braga (MDB-AM), propunha a criação de um “departamento de apoio à regulação na Secretária Nacional de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades”.

Na prática, a emenda nº 81 colocaria sob risco a autonomia da ANA, agência responsável por editar normas e fiscalizar o cumprimento das metas de saneamento, trazendo insegurança jurídica ao setor. O relatório final da comissão mista, no entanto, tirou a emenda 81 e outras 14 propostas de emenda da MP alegando inconstitucionalidade e falta de dotação orçamentária.

O mercado financeiro já vinha acompanhando com atenção as tentativas do governo de mexer no marco regulatório e coube ao Itaú BBA soltar o alerta na véspera, ao divulgar um informe denunciando a emenda com ameaça à ANA, causando reação do setor privado.  "Uma ANA enfraquecida reduziria a atratividade de investir no setor", diz um trecho do informe, assinado por um equipe liderada por Marcelo Sá, analista de Utilities do Itaú BBA.

Outra emenda, também criticada por empresas do setor e que faz parte da MP 1154, prevê o retorno da ANA ao Ministério de Integração e Desenvolvimento Regional (MIDR) - revertendo a transferência para a pasta de Meio Ambiente (MMA) que havia sido feita em janeiro pelo governo federal. Essa emenda foi mantida no relatório do líder do MDB na Câmara, Isnaldo Bulhões (AL), e corre o risco de ser aprovada.

Os últimos três ex-diretores da ANA – Jerson Kelman, José Machado e Vicente Aandeu – já haviam divulgado na véspera um manifesto defendendo a manutenção da agência reguladora no Ministério do Meio Ambiente, conforme estipulava o texto original da MP.

De acordo com o manifesto, não há qualquer benefício com tal transferência. “Pelo contrário, colocar a regulação sob o teto ministerial responsável por obras de uso de água reduzirá a independência regulatória da ANA e certamente prejudicará o uso sustentável dos recursos hídricos e a agenda ambiental do país”, diz o texto.

"A responsabilidade de produzir normas gerais para a regulação do saneamento deve permanecer na ANA e não em qualquer órgão da administração direta", disse Kelman ao NeoFeed, ressaltando que previsibilidade e coerência, tanto jurídica quanto regulatória, são pré-requisitos para a criação de um ambiente confiável para investimentos privados. "Para isso, é necessário que as agências reguladoras, inclusive a ANA, sejam entidades de Estado e não do governo de plantão."

Outras tentativas

Não é a primeira vez que o governo Luiz Inácio Lula da Silva tenta esvaziar a ANA. Na estreia do novo governo federal, no dia 1º de janeiro, uma medida provisória e um decreto tentaram tirar da agência parte de suas funções, mas a repercussão foi tão ruim que o governo recuou.

Depois, em março, dada a falta de apoio do Congresso para mudar a Lei de Saneamento (14.026/2020), o governo publicou os Decretos 11.466 e 11.467. O objetivo era dar suporte para que as empresas estatais de saneamento ganhassem mais tempo e margem de manobra para se adequar às exigências contidas no marco regulatório de 2020.

De acordo com o novo arcabouço de saneamento, as empresas públicas e privadas com concessões precisam garantir, nos próximos dez anos, o atendimento de água potável a 99% da população e o de coleta e tratamento de esgoto a 90% até 2033.

Um dos decretos dava aval para a regularização de contratos irregulares sem processo licitatório, assinados diretamente entre municípios e companhias estaduais de saneamento.

O outro decreto flexibilizou os mecanismos da comprovação da capacidade econômico-financeira da prestadora estatal de serviço para realizar os investimentos necessários para atingir a meta de universalização.

O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), então, solicitou que o governo federal mudasse os decretos, alegando que não estavam de acordo com o novo marco regulatório.

Porém, diante da ausência de mudança, Arthur Lira levou o Decreto Legislativo 111/2023 (PDL 111) à votação, que foi aprovado pela Câmara dos Deputados por expressiva maioria, revogando os decretos publicados pelo governo. O projeto de lei vai agora será enviado ao Senado para aprovação.

De acordo com Frederico Favacho, sócio do escritório Santos Neto Advogados e especialista em Direito Ambiental, Infraestrutura e Logística, a tentativa do governo de obstruir a ANA e outros órgãos autônomos deve prosseguir. "A criação das agências reguladoras implicou na transferência de uma parte da competência regulatória do Poder Executivo para essas agências federais, o que pode ser considerado pelos governos uma perda de poder", disse Favacho.

As agências reguladoras têm autonomia para editar normas, sem ingerência política. A ANA por exemplo, teve sua atual diretoria com mandato fixo nomeada pelo governo anterior, de Jair Bolsonaro.

Na versão final da MP 1154, o Executivo ainda sofreu outra derrota. O relator rejeitou uma emenda que previa a possibilidade da criação de conselhos temáticos ligados aos ministérios para editar normas relacionadas às agências reguladoras, o que esvaziaria suas atribuições.