As instituições brasileiras têm uma capacidade notável de nos fazer, de tempos em tempos, acreditar que amadurecemos, que mudamos de patamar institucional. Mas não raro estes lampejos são curtos, e logo voltamos ao mesmo lugar, onde a luz é escassa.

Os recentes decretos presidenciais que mudaram o jovem marco legal do saneamento (Decretos nº 11.466 e nº 11.467) são mais um exemplo de como mesmo compromissos de altíssima relevância, discutidos amplamente com a sociedade e aprovados pelo Congresso, parecem ser firmados a lápis, facilmente apagados e reescritos.

Desta vez, há de se reconhecer que chegamos um pouco mais longe do que o normal, o que torna o retrocesso ainda mais doloroso: aprovou-se em 2020 a lei-quadro que mudou substancialmente o marco aplicável ao setor (Lei nº 14.026/2020), pela qual implementaram-se avanços.

Entre esses avanços, estão a concorrência em setor até então majoritariamente operado por estatais; a fixação de metas de universalização que não existiam; estímulos à regionalização para aumentar a racionalização na prestação; e requisitos econômicos mínimos para os operadores. Não são mudanças simples, tampouco perfeitas, mas definitivamente representaram um avanço.

E mesmo com as conhecidas dificuldades em atrair investimentos em infraestrutura para o Brasil, eles vieram. Vimos uma onda de grandes grupos domésticos e internacionais fincando bandeira no setor, com concorrências bilionárias incomuns em saneamento (vide o caso do leilão da CEDAE no Rio de Janeiro, o maior da história).

No curto período de 2020 até agora, houve 16 leilões, abrangendo 217 municípios, 20 milhões de pessoas e contratos prevendo R$ 46,7 bilhões de investimentos, além do pagamento de R$ 29,5 bilhões em outorgas.

No lado das estatais, também se verificaram movimentos interessantes: diante da realidade que se impunha, os Estados controladores precisaram avaliar alternativas, como mudança do foco de atuação, preparação para concorrer no mercado de saneamento, ou mesmo privatização, encorajada pelo novo marco.

Os decretos chegam neste contexto, e o desassossego que os acompanhou, enfaticamente demonstrado por diferentes atores, explica-se por um conjunto de razões. A começar pelo timing: pode parecer ingênuo por se tratar de Brasil, mas já se esperava alguma estabilidade do modelo após três anos de sua aprovação e uma série de projetos já erigidos sob suas normas.

Ledo engano: mudanças de governo tornam tudo fluido, inclusive marcos jurídicos inteiros. Segundo, pela forma: em uma canetada presidencial, alteraram-se dispositivos aprovados em lei após longa tramitação, em evidente extrapolação do poder regulamentar do Poder Executivo, que não pode inovar contrariamente às diretrizes essenciais da política pública estabelecida pelo legislador.

O ponto mais incômodo dos decretos é o fato de terem tocado na parte pulsante do que foi definido na nova política setorial – em especial sua diretriz central de encerrar o monopólio estatal.

O ponto mais incômodo dos decretos é o fato de terem tocado na parte pulsante do que foi definido na nova política setorial – em especial sua diretriz central de encerrar o monopólio estatal

Em uma ousada manobra interpretativa, o Decreto nº 11.467 instituiu que a “prestação direta” dos serviços pelo seu titular pode se dar por meio de um ente de sua administração indireta, inclusive empresa estatal.

Assim, nos blocos regionais que tenham a presença do Estado como titular (como regiões metropolitanas, onde estão os maiores contratos), as atuais estatais estaduais poderão seguir sendo contratadas sem licitação, em desvirtuamento do princípio que norteou o novo marco, de promover a concorrência no setor.

É digno de nota também o tratamento dado pelos decretos aos casos de municípios com atual situação irregular de seus serviços de saneamento, como nos casos de inexistência de contratos.

De forma simplória, disciplinou-se que a irregularidade do contrato não implica a interrupção automática do serviço, podendo o titular do serviço manter a prestação por meio do atual prestador pelo tempo necessário até a transferência do serviço para novo prestador. Ou seja: passe livre para manutenção de contratos de programa com estatais de saneamento.

Definitivamente, não é o que prega o novo regime. Este golpe desferido ainda em sua infância pode ser determinante para seu futuro, justamente quando se ensaiava uma decolagem para uma nova realidade que o modelo estatal não conseguiu entregar (salvo raras exceções).

É importante que se construa uma articulação bem-feita pelos principais atores do setor de saneamento. Do governo, espera-se sobriedade para revisitar eventuais sobressaltos trazidos pelos decretos, e para buscar mudanças dentro das regras constitucionais. Há muito em jogo para já renunciarmos aos benefícios do novo regime do setor de saneamento.

* José Augusto Dias de Castro é doutorando em Direito do Estado pela USP, mestre em Direito Público pela London School of Economics and Political Science (LSE) e mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público. Advogado e sócio do escritório TozziniFreire Advogados.