A vitória do presidente da Argentina, Javier Milei, na eleição parlamentar de meio de mandato no último domingo, 26 de outubro, também surpreendeu o economista Fabio Giambiagi, pesquisador associado do FGV Ibre e um profundo conhecedor do país – nascido no Brasil de pais argentinos, mudou-se com a família na infância para o país vizinho, onde morou até a adolescência, quando voltou de vez ao Brasil.
O fato de Milei ter revertido uma derrota tida como certa para uma vitória eleitoral acachapante reflete, segundo Giambiagi, mais a rejeição dos argentinos à oposição peronista do que o apoio firme à política econômica de Milei – que reduziu a inflação, mas impôs sacrifícios aos argentinos.
“Não creio que o resultado deva ser visto como um respaldo às medidas de Milei, talvez mais como uma rejeição ao risco do peronismo, uma oposição que não apresentou programa nem propostas na campanha mesmo diante da iminente derrota do governo”, diz Giambiagi, nesta entrevista ao NeoFeed. “Acho que boa parte do eleitorado sentiu que tinha que escolher entre se afogar agora ou tentar sobreviver com água no pescoço, à espera de um milagre."
A derrota da oposição, segundo ele, fará com que o peronismo enfrente até a eleição presidencial de 2027 o mesmo dilema em relação à sua líder, Cristina Kirchner, que a direita brasileira tem em relação a Jair Bolsonaro. “Ambos têm forte poder eleitoral, mas são tóxicos e ligados a lembranças negativas, bloqueando outras candidaturas viáveis.”
Para o economista, porém, Milei deve evitar a euforia da vitória e “resetar” a economia com medidas visando o médio prazo. Uma delas é deixar o câmbio flutuar, como o Brasil fez em 1999, e criar uma política de compra diária de dólares – aproveitando a ajuda financeira de US$ 20 bilhões dos Estados Unidos –, para recompor as reservas internacionais em moeda forte.
“Essas medidas certamente vão pressionar um pouco o câmbio e a inflação, mas não vão deixar a Argentina sujeita aos sobressaltos como os dos últimos meses”, diz. Em termos políticos, com melhor composição no Congresso, Giambiagi disse que Milei deveria mirar reformas estruturais, como trabalhista, previdenciária e tributária. Veja a seguir trechos da entrevista:
Qual o peso da vitória de Milei, em termos de governabilidade, para os próximos dois anos?
De fato, foi uma vitória enorme e inesperada. Na semana passada, fontes do governo citadas pela imprensa argentina imaginavam como realista uma derrota do governo com margem de 5%. Mas o partido do governo acabou ganhando por 10%. Provavelmente, o que vai ocorrer nos próximos dias é uma tentativa de todo mundo entender o que aconteceu.
A derrota da oposição peronista foi tão surpreendente quanto a vitória do partido de Milei, até pelo fato de o partido governista ter sido duramente derrotado na eleição da Província de Buenos Aires há poucas semanas. O que explica essa reversão?
O peronismo, que deixou triste memória no passado recente, durante toda essa campanha eleitoral não falou em nenhum momento que solução teria para sair do descalabro em caso de uma derrota do Milei, que estouraria como um balão furado, principalmente se o presidente americano Donald Trump decidisse operar contra, como havia prometido se o governo perdesse. Os peronistas não apresentaram programa nem propostas.

Quais outras lições deixadas pela eleição?
Vejo também outras duas. A primeira foi o eventual desaparecimento de uma alternativa do centro para a eleição presidencial de 2027. Todos os políticos que surgiram após a crise vivida por Milei nos últimos dois meses foram derrotados e hoje não se vislumbra ninguém com chances realistas para chegar em 2027 prometendo “fazer como Milei, mas melhor, com menos tensão e mais diálogo”. A derrota do peronismo também trouxe dilemas de como, até a eleição presidencial, vai chegar unido, com quem e dizendo o quê. Neste aspecto, o peronismo enfrenta o mesmo dilema em relação à sua líder, Cristina Kirchner, que a direita brasileira tem em relação a Jair Bolsonaro.
Por quê?
Ambos têm forte poder eleitoral, mas são tóxicos e ligados a lembranças negativas, bloqueando outras candidaturas viáveis. Lideranças carismáticas tendem a não querer deixar o palco – a quarta candidatura de Lula em 2026 é um exemplo.
A vitória de Milei foi, então, um voto de protesto contra o peronismo?
Acho que boa parte do eleitorado sentiu que tinha que escolher entre se afogar agora ou tentar sobreviver com água no pescoço, à espera de um milagre. O governo teve uma vitória maiúscula, sem dúvida nenhuma, mas por mais que seja compreensível e justificada a euforia, em especial do mercado, não creio que tenha que ser pensada como um respaldo às medidas do governo, talvez mais como uma rejeição ao risco do peronismo.
"Parte do eleitorado escolheu entre se afogar agora ou tentar sobreviver com água no pescoço"
A desaceleração da inflação, em meio a tantos problemas que o Millei acumulou nesses últimos dois meses, teve um peso importante para convencer o eleitorado a renovar o apoio a ele, mesmo com queda de padrão de vida?
Gostaria de começar respondendo lembrando que a oposição - no caso, o peronismo - tem que fazer alguma reflexão sobre essa derrota, porque de duas uma: ou a situação não era tão catastrófica quanto a oposição dizia, e aí nesse caso o argumento da catástrofe estava errado, ou se a oposição estava certa e a situação era catastrófica, então a oposição precisa entender por que a população votou a favor do governo.
Algum palpite?
O mercado de trabalho argentino, documentado pelo Indec, que é o IBGE argentino, está segmentado em três grandes categorias. O setor formal privado, o setor formal público e o setor informal privado. Em dezembro de 2017, quando o governo de Mauricio Macri fez uma intervenção no índice de preços, deu início a outro, do zero, com índice 100, em termos reais, deflacionado pelo IBGE argentino. Em dezembro de 2000, o índice de salário real dos trabalhadores informais era de 70, perda de 30% ao longo de três anos. Aí veio a inflação e o índice foi caindo até atingir 36 em abril de 2024. Hoje, esse nível está em 78.
Ou seja, houve recuperação salarial?
Exato, o mesmo ocorreu com o setor privado formal. A economia caiu no começo do ano passado e depois se recuperou, até cair na estagnação desde fevereiro deste ano. Mas daí julgar que há uma tragédia social é uma miragem. Os críticos falam como se a Argentina estivesse vivendo uma crise do tipo da Venezuela. Obviamente, o setor público se deu mal porque o governo congelou os salários do funcionalismo. O governo, enfim, cometeu uma série de erros, mas se simplesmente tivesse feito tudo errado, não teria tido a vitória que teve.
Daqui para frente, a garantia de ajuda financeira de Donald Trump de US$ 20 bilhões é suficiente para dar um colchão para o governo começar a adotar outros passos na reforma?
O grande desafio para o governo hoje, no meu modo de ver, é resistir à euforia do sucesso, associada a uma situação de calmaria depois desse sucesso eleitoral. Ao mesmo tempo, isso pode ser um grande problema para o médio prazo.
"O governo deve resetar a economia, deixando o câmbio flutuar e comprando dólares, para recompor as reservas"
Por quê?
O grande desafio para a Argentina continua a ser o de gerar dólares, com os quais, a partir de agora, efetivamente começar a pagar a dívida contraída com o FMI e também com os Estados Unidos. O dinheiro que a Argentina está recebendo não é uma doação, precisa ser devolvido. E isso vai depender entre outras coisas da taxa de câmbio. Com a inflação que ainda irá aparecer nos índices, provavelmente vai haver uma apreciação do câmbio. Como a Argentina é de uma instabilidade louca, então o governo deve agora pensar no futuro.
Qual a melhor alternativa?
O governo agora está numa situação ideal para “resetar” a economia. Isso passaria, por duas medidas, ambos associadas ao câmbio. Em primeiro lugar, deixar com que o câmbio flutue agora, como o Brasil fez em 1999. Em segundo lugar, ter um esquema de compra de reservas. Por exemplo, um anúncio diário no qual o governo vai entrar todo dia comprando US$ 30 milhões, US$ 40 milhões por dia ao longo dos próximos anos. Então, certamente vai pressionar um pouco o câmbio, vai pressionar um pouco a inflação, mas o país não vai ficar sujeito aos sobressaltos dos últimos meses, decorrentes justamente de não ter dinheiro para pagar seus compromissos.
Além dessa mudança na política do câmbio, seria importante adotar alguma medida macroeconômica?
Seria essencial avançar em três reformas, trabalhista, previdenciária e tributária. Na verdade, se falou muito das três, genericamente. Mas como o governo não tinha sequer a garantia de um terço no Congresso, que dirá de ter maioria, nunca houve nenhum aperfeiçoamento. Agora, com um terço assegurado e a perspectiva de construção de maioria com partidos aliados, faz todo sentido começar a aprimorar os detalhes sobre isso.
Daria para aprovar alguma delas até 2027?
Estamos falando de reformas onde cada vírgula pode envolver bilhões. A trabalhista é complicada, por causa da força dos sindicatos. Talvez seja realista imaginar que duas reformas sejam aprovadas e aí ficaria uma terceira para o que seria o segundo governo Milei.