Os especialistas em política costumam dizer que os 100 primeiros dias de um governo são o equivalente à lua de mel de um casamento. É tempo de agradar o parceiro ou a parceira, mesmo que com pequenos sacrifícios contra à própria vontade, tudo em nome do amor e da estabilidade da união.
Em uma transição totalmente atípica na história recente do País, o eleito Luiz Inácio Lula da Silva foi obrigado a começar a gastar este capital político antes mesmo de sua posse. Antes mesmo de assumir o cargo já teve que assumir a realpolitik e negociar com o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), o líder do Centrão.
Lula empenhou toda a sua energia para bancar àquela que foi sua principal promessa de campanha, o pagamento do Bolsa Família no valor de R$ 600 – mais R$ 150 por filho menor de seis anos. Convenceu o Congresso Nacional, em uma demonstração de que mesmo a oposição sendo majoritária no parlamento lhe garantirá apoio.
Dessa forma, aprovou uma emenda à Constituição que permitirá ao governo aumentar em R$ 145 bilhões o teto de gastos no Orçamento de 2023 para bancar os gastos sociais.
Com essa etapa vencida, Lula passará, a partir de 1º de janeiro, a usar do capital de seus mais de 60 milhões de votos para mostrar a “cara” de seu governo, bem como tentar aprovar as principais medidas. São temas como prorrogar (ou não) a desoneração dos combustíveis, estabelecer um novo arcabouço fiscal, avançar com a aprovação de uma reforma tributária, reconstruir políticas que foram abandonados no governo Bolsonaro e reinserir o Brasil no cenário internacional.
O presidente testará, logo no início desses primeiros 100 dias, sua popularidade diante dos tributos dos combustíveis. Não está ainda definido se Lula manterá a isenção dos tributos federais sobre os combustíveis, sancionada por Bolsonaro no ano passado, que abaixou o preço da gasolina e diesel.
De um lado, o novo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, é contra a medida. “O ministro argumentou que a reforma tributária não vai demorar e que essa medida beneficia essencialmente a classe média, que tem carro”, disse ao NeoFeed um interlocutor de Haddad.
Para o mercado, a medida também poderia ser um bom sinal, considerando o permanente receio em relação à política econômica de Lula e ao tamanho do ajuste fiscal que ele conseguirá fazer.
Mas tudo indica que o presidente mudou de ideia. Em entrevista, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, disse que defendia os argumentos de Lula. “Eu, particularmente, defendo que tenha pelo menos uma prorrogação até a gente entrar para ver como está a política de preços de combustíveis da Petrobras. Porque o problema não é a questão do tributo, é a política de preços da Petrobras, é a dolarização que aconteceu.”
O uso que a oposição fará do imposto sobre os combustíveis, já ficou claro. Em uma rede social, o atual ministro das Minas e Energia, Adolfo Sachida, afirmou que a volta de tributos federais sobre combustíveis pode elevar em até R$ 0,69 o preço da gasolina por litro já a partir deste domingo. “Por isso se chama PEC da Gastança. Precisa arrecadar muito para pagar todos esses gastos”, disse Sachida.
O reajuste dos combustíveis toca em outro ponto que vai pautar as discussões e o maior ou menor apoio às primeiras medidas de Lula: o aumento da inflação. Economistas acreditam que a volta desses tributos sobre os combustíveis deve impactar imediatamente os índices inflacionários, tendo em vista o impacto sobre o transporte de alimentos, o custo do botijão do gás, que também deverá aumentar, e as tarifas dos transportes.
Haddad, em todos os pronunciamentos, tem prometido uma âncora fiscal confiável e sustentável, um plano de ajuste de receitas, revisão de gastos e medidas que aumentem a arrecadação, juntamente com a aprovação da reforma tributária e um novo arcabouço fiscal que pode acabar com uma perda de recursos em renúncia fiscal para União da ordem de 4% do PIB, em 2023.
Em seus discursos, entretanto, Lula já adiantou que não sacrificará a população para agradar ao mercado. Em um desses pronunciamentos, o presidente afirmou que sua prioridade zero é o povo e não o mercado. E sem meias palavras, conclui.
“Por que que as mesmas pessoas que discutem com seriedade o teto de gastos não discutem a questão social desse país? Por que que o povo pobre não está na discussão da planilha da macroeconomia? Por que a gente tem meta de inflação, mas não tem meta de crescimento? Por que a gente não estabelece um novo paradigma de funcionamento nesse país?”
E prosseguiu: “Por que as pessoas são levadas a sofrer em conta de garantir a tal de estabilidade fiscal nesse país? Por que que todas as pessoas falam ´é preciso cortar gastos´? ´É preciso fazer superávit, é preciso fazer teto de gastos?”
E são exatamente programas alocados nas pastas como Saúde, Educação, Meio Ambiente e outros os que vão precisar de mais recursos e menos cortes, nestes 100primeiros dias de governo. O estudo revelado pelo Grupo de Transição mostrou que antes de gastar, estes ministérios terão que se reestruturar.
Nos 100 primeiros dias, o governo também vai correr para tentar anular o máximo de regras criadas por Bolsonaro, principalmente os ordenamentos jurídicos relativos ao porte e posse de armas, ao funcionamento dos CACs, centenas de normas no setor ambiental, em especial as que flexibilizaram as normas de fiscalização, e a imposição do sigilo de 100 anos em dezenas de documentos públicos.
O legado de quatro anos do governo Bolsonaro, diz o relatório do grupo de Transição, “deixa para a população o reingresso do Brasil no mapa da fome: hoje são 33,1 milhões de brasileiros que passam fome e 125,2 milhões de pessoas, mais da metade da população do país, vivem com algum grau de insegurança alimentar”.
Na educação, segundo o relatório, foram cortados “deliberadamente” recursos e não foram contratados os serviços de impressão de livros didáticos, um problema que se refletirá neste ano letivo.
“É inacreditável o que foi encontrado pelos grupos temáticos nos Ministérios do governo Bolsonaro”, observou ao NeoFeed, um dos coordenadores do trabalho, o então presidente da Fundação Perseu Abramo, hoje futuro presidente do BNDES, Aloizio Mercadante.
Além disso, os 100 primeiros dias de governo serão marcados por outro tema: o esforço do Itamaraty para colocar retomar o protagonismo do Brasil no cenário internacional. “Espera-se que o Brasil assuma novamente seu papel de líder no continente e no mundo”, disse ao Neofeed, o ex-ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, observando que, já neste primeiro mês, Lula viaja para os Estados Unidos e Argentina e até março visitará a China.