Os sinais emitidos pelo recém-eleito presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua equipe econômica a respeito da trajetória dos gastos podem ter consequências muito além do que se vê nos mercados.
A escolha por um aumento de gastos sem compensações pode facilmente resultar numa turbulência política muito mais intensa do que a vista nos últimos anos, considerando a divisão do País. O alerta é de Walter Maciel, CEO da AZ Quest, gestora que pertence ao grupo Azimut em sociedade com a XP.
“O Lula teve 51% dos votos, mas ele teve apenas 38% dos votos da população apta a votar”, diz ele ao NeoFeed. “Esperamos que o governo eleito tenha a maturidade de reconhecer que passou por um fio de cabelo, de que tem muita gente protestando, um grande barril de pólvora, e não jogue mais gasolina.”
Segundo ele, Lula está “se queimando” mesmo antes de assumir como presidente com as falas a respeito da situação fiscal e dos gastos, algo que ganha ainda mais força quando não se tem um nome apontado para conduzir a economia.
“A minha preocupação é que, considerando que a maioria não votou no Lula, ele vai dilapidar o capital político muito cedo. Se eu sou o Lula, a minha primeira preocupação é como eu facilito a minha vida”, afirma Maciel.
Neste sentido, além da escolha de um ministro com interlocução e confiança dos agentes econômicos, Maciel espera que a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição tal como foi apresentada (excluindo o pagamento de R$ 600 em Auxílio Brasil mais uma mais uma parcela extra de R$ 150 para cada criança abaixo de 6 anos do Orçamento pelos próximos quatro anos, a um custo de R$ 175 bilhões) seja revista, pelo novo governo ou pelo Congresso.
“Nós devemos crescer 0,7%, podendo chegar a 1% no ano que vem. É muito pouco, e se começar a criar condições adversas para navegar, pode ter uma insatisfação popular muito cedo”, afirma.
Para Maciel, se o novo governo não forçar a mão nos gastos, o real pode se valorizar frente ao dólar e a Bolsa pode crescer, como visto ao longo do ano. Mas, independentemente do momento, ele destaca que a AZ Quest é capaz de se adaptar à situação, considerando os 75 fundos e mais de R$ 23 bilhões sob gestão que possui, com atuação em diversas áreas da economia e do mercado.
Confira os principais trechos da entrevista ao NeoFeed:
Como é que você viu o Brasil em 2022? Surpreendeu, considerando o cenário esperado no começo do ano?
Estou vendo esse ano, até agora, como ok. O problema é olhar para frente. O mercado está menos unânime do que já foi, está com visões muito heterogêneas. O que me chama mais atenção é como o público em geral está meio perdido. E acho que é por conta desta eleição, que foi tão polarizada. Acredito que, em parte, por culpa do próprio presidente Bolsonaro, especialmente no começo do mandato, porque ele não foi muito diplomático. Isso gerou muito antagonismo com parte da grande imprensa, que apontou muito bem as coisas ruins, mas tinha muita dificuldade de reconhecer as coisas boas do governo. E isso levou a uma distorção de visão do que estamos vivendo.
Como assim?
Todos os governos, sem exceção, aceleram os gastos em anos de campanha para tentar se eleger. Mas acho que existe uma dificuldade de visão do mercado, porque, de 2019 para cá, conseguimos derrubar a relação entre a dívida e o PIB em 3,5%. O Bolsonaro deu quase 10% do PIB em ajuda à população, no momento complicado da Covid-19. E, mesmo assim, vai entregar uma despesa primária menor do que herdou. Isso é um feito. As pessoas estão confundindo o nosso quadro com o desempenho econômico do governo Bolsonaro. A gente crescer quase 3% neste ano e deixar um carrego de 0,7% para 2023 é um feito. As dezenas de reformas também: o marco do gás, do saneamento, a independência do BC. É preciso dar mérito para quem merece, da mesma forma que o Lula conseguiu gerar uma reserva de US$ 400 bilhões no governo dele. ‘Ah, mas foi no ciclo da China’. Não interessa, ele poderia ter pegado o ciclo e não ter gerado reserva alguma. Então, vamos dar mérito a quem merece.
"Se eu sou o Lula, a minha primeira preocupação é como eu facilito a minha vida"
O que você espera neste começo de governo Lula?
Vejo 2023 com grande preocupação. Começamos a aumentar os juros antes de todo mundo e tivemos uma administração fiscal altamente responsável. Se tivéssemos uma continuação do governo Bolsonaro, você saberia o que esperar e que alguns dos excessos seriam controlados e que teriam um plano de continuar vendendo ativos estatais, privatizações que poderiam trazer um alívio para as contas. Teríamos uma série de coisas para fazer que dariam um sinal claro que poderia voltar a uma trajetória de estabilidade fiscal, que permitiria o País crescer muito mais. Com a eleição do Lula, o caminho bifurcou. A verdade é que não temos certeza, mas tem uma série de sinais.
Você não espera um cenário mais parecido com o primeiro governo do Lula, tido como mais responsável em termos fiscais?
Espero um misto do primeiro governo com o segundo. O que não espero ainda é um cenário Dilma. Mas qual é o grande problema? Essa foi a eleição mais apertada da nossa história. O Lula teve 51% dos votos, mas 30 milhões de pessoas não votaram. Então, ele teve 38% dos votos da população apta a votar. É muito baixo. O que esperávamos? O Lula é um personagem extremamente controverso, tem quem o ame e quem o odeie. Mas ele é uma unanimidade em termos de articulação e sensibilidade política. Esperávamos uma reação que tivesse antenada ao momento do País. O discurso no domingo (31 de outubro), após as eleições, foi muito nessa linha, de que foi um grupo de pessoas que o elegeu e que ele vai fazer um governo ouvindo todos. Aquilo era um sinal sobre o que esperar e o mercado, na primeira semana, embarcou nessa expectativa. Só que passou um tempo e a área econômica sem definição alguma e com sinais muito diversos do que poderia vir.
Como você acha que Lula chega em 2023?
Tudo o que acontecer daqui até 31 de dezembro começa a ser afetado pelo discurso de quem vai tomar posse. E como o Lula não definiu o nome para comandar a economia, todo o ônus vai para ele. E quem falou naquela quinta-feira (dia 10 de novembro) e dobrou a aposta na sexta-feira (11 de novembro) foi ele. Não estou julgando, mas, do ponto de vista político, quando é ele quem fala e não tem ninguém ainda apontado para assumir o cargo, o ônus todo, positivo ou negativo, vai para ele. E como a fala foi muito malvista pelo mercado, começou-se uma guerra nas redes, com pessoas culpando o mercado. A minha preocupação é que, considerando que a maioria não votou no Lula, ele pode dilapidar o capital político dele muito cedo. Se eu sou o Lula, a minha primeira preocupação é como eu facilito a minha vida.
Como o Lula facilitaria a vida dele?
Eu sei que o Lula quer aumentar a renda das pessoas, quer acelerar a melhoria da renda real e das condições de vida da população mais pobre, mas, para isso, juro muito mais alto, dólar muito mais forte, mercado muito mais desancorado não ajuda. Quanto mais rápido ele conseguir colocar um nome na Economia, que ancore as expectativas, mais fácil vai ser o caminho para endereçar essas coisas. Agora, o que está nos jornais é que o governo vai propor (uma PEC de) R$ 175 bilhões por quatro anos sem nenhuma contrapartida. E quem está negociando a PEC é a equipe de transição econômica, o que é complicado, porque você aprova uma pauta bomba que vai afetar a vida do cara que vai tocar a economia pelos próximos quatro anos. Quando você começa a dar esses sinais, as chances de ter alguém que o mercado confia, diminui. Se começar a mostrar ao mercado que você vai elevar os gastos em 2% do PIB ao ano pelos próximos quatro anos, o mercado vai ter que precificar isso, porque isso eleva a dívida para 100% do PIB em 2030, e o Brasil fica inviabilizado.
"O Lula, com uma boa administração, tem a faca e o queijo na mão. Mas o inverso também é verdade"
Pelo visto, você não está muito otimista com o que vem por aí.
Eu ainda aposto que o político tem cara de peroba. Acho que ainda vai vir um ‘não, vocês me interpretaram errado, eu acho que tem que melhorar o social, eu me empolguei ali, mas de fato a gente sabe que social sem fiscal não vai’. Dá uma guinada de 180 graus, bota um nome forte de novo, arruma a casa, porque aí você pode fazer o seu plano. O Lula pode começar, a partir de 2024, a dar um salário mínimo real um pouco mais alto, começar a incrementar políticas públicas para aumentar o emprego. O Brasil precisa muito de infraestrutura, precisa ter uma política industrial, precisa voltar investir em moradia, tem dinheiro estrangeiro para vir para a parte ambiental. Não é tão ruim a situação. O Bolsonaro deixou o negócio razoavelmente arrumado, porque dado o que estava com a Dilma, Temer e Bolsonaro botaram o trem no trilho. Ainda tem uma ladeira para subir, mas se fizer as coisas direitinho, o próximo mandato tem tudo para o presidente deixar o Brasil voando, está na mão dele.
Você acha possível o novo governo cumprir com a promessa de manter o Auxílio Brasil em R$ 600, sem afetar as contas públicas?
Você gastar R$ 175 bilhões pelos próximos quatro anos sem nenhuma contrapartida é impossível. Mas dá para manter os R$ 600, só que tem que cortar despesa ou gerar receita. O que não pode é começar a falar que vai quebrar a Regra de Ouro (constitucional que determina que a realização de operação de crédito não pode superar as despesas de capital). O que o governo poderia fazer é dizer que quer autorização para ter R$ 600 fora do teto em 2023 e, quando chegasse janeiro, o novo ministro da Economia se sentaria com o novo Congresso e negociaria o que fazer dali em diante.
Você vê o Congresso aprovando a PEC do jeito que o novo governo gostaria?
Eu acho que para o Congresso, hoje, dar quatro anos de cheque em branco, não só resultaria num ambiente econômico bem complicado, mas também não seria uma equação inteligente, que terá muito mais capital político se for fatiando o apoio. E o Congresso não vai conseguir justificar para o eleitor dele uma mega majoração de tributos. Acho muito difícil, se olharmos como estão as ruas, com as manifestações. Esperávamos que o governo eleito tenha a maturidade de reconhecer que passou por um fio de cabelo, de que tem muita gente protestando, um grande barril de pólvora, e não jogue mais gasolina.
E o que é jogar mais gasolina?
Jogar gasolina não é só para o Lula, é para qualquer um. Inflação alta, desemprego, baixo crescimento econômico, tudo isso incendeia. Vamos lembrar de 2013, quando a Dilma saiu de 60% de aprovação para um dígito, e nunca mais voltou para a casa dos dois dígitos. O Lula, com uma boa administração, tem a faca e o queijo na mão. Mas o inverso também é verdade. Nós devemos crescer 0,7%, podendo chegar a 1% no ano que vem. É muito pouco. E se começar a criar condições adversas para navegar, pode ter uma insatisfação popular muito cedo. O Brasil pode ser um pato manco no final do primeiro ano. E com o Congresso mais à direita e a situação piorando, fica mais popular para o congressista ser de oposição. E o governo fica com mais dificuldades de desempenho. E aí ferrou.
"O mercado está de dedos cruzados, torcendo pelo melhor, e o melhor hoje é ter melhores condições de governabilidade para o novo governo"
Como a AZ Quest planeja sua estratégia para 2023, considerando este cenário?
Temos uma vantagem na casa por ter ações, macro e renda fixa. No caso de ações, temos small e mid caps, light caps, long biased, long short, tem arbitragem e tem crédito privado, que está voando. Trouxemos agora uma área de agro, que ainda não posso falar muito do produto, mas posso dizer que, em dezembro, teremos um fundo fechado listado em Bolsa. Mosso primeiro IPO, que é agro. Trouxemos agora um time de infraestrutura que ainda não anunciamos ao mercado, porque tem o lançamento do agro em dezembro. Estamos olhando para ter uma estrutura nossa de imobiliário, comprando uma empresa que já existe, já roda, tem patrimônio sob gestão. Então, vamos para ativos ilíquidos. Tudo isso nos permite ter produtos para todo o tipo de clima.
E em termos da situação do mercado, a macroeconomia?
Olhando para o macro, acho que o dólar andou muito mais relativo aos juros e à bolsa. Então, ainda estamos comprado em real. Reduzimos a posição de juros, mas ainda está dado ali em 2024. Bolsa temos muito menos comprado, mas para quem quer olhar renda variável, as empresas brasileiras estão muito descontadas, sob qualquer ângulo. Estou na Quest há 16 anos, nunca peguei um céu de brigadeiro e, ainda assim, os fundos foram bem em qualquer cenário. Evidentemente que pegar um vento de popa [favorável] é diferente que pegar um vento de proa [contrário]. E quem faz esse vento é o governo. O mercado está todo de dedos cruzados, torcendo pelo melhor. E o melhor hoje é ter melhores condições de governabilidade para o novo governo.
Onde estão as oportunidades em termos de alocação?
Se o novo governo anunciar uma política econômica consistente e adequada, o dólar pode rapidamente ir para a região dos R$ 4,70, ficar mais perto de R$ 4,00 do que R$ 6,00. Os juros futuros podem fechar muito e a Bolsa pode se valorizar uma barbaridade. Lembrando que a Petrobras é uma fonte de receita gigante para a União e matar esse cash cow seria um erro político e econômico muito grande. Num cenário desses, a Petrobras pode voar, mas outras ações podem voar, porque o mercado está barato. E podemos nos beneficiar de uma enxurrada de investimentos estrangeiros. Caso ocorra o contrário, aí os juros vão abrir mais, o real vai se desvalorizar mais e, talvez neste cenário, quem tem menos a perder é a bolsa, que está muito barata e tem muita empresa boa que pode repassar custos. A bolsa pode cair mais, mas não muito mais: deve ir para 90 mil pontos.