O veto do governo federal ao uso de precatórios para o pagamento de concessões, anunciado no mês passado, seguido de uma portaria da Advocacia-Geral da União (AGU) revogando a regulamentação do uso desses papéis, criou um limbo jurídico envolvendo quatro concessionárias de aeroportos que estavam programando pagar cerca de R$ 3,6 bilhões em outorgas com precatórios.
O caso mais recente é o da espanhola Aena, que arrematou 11 aeroportos (incluindo o de Congonhas, em São Paulo) por R$ 2,4 bilhões, em leilão dos terminais realizado em agosto de 2022, e deveria pagar cerca de R$ 1,6 bilhão - quase 50% da outorga (dinheiro pago ao governo pelo uso da infraestrutura da União) - em títulos precatórios. O contrato de concessão foi assinado, mas persiste o impasse sobre o uso dos papéis para o pagamento, que pode acabar na Justiça.
Os precatórios são títulos que representam uma ordem de pagamento expedida pela Justiça para cobrar do governo os valores devidos a uma pessoa física ou jurídica após uma condenação definitiva.
Esses papéis, no entanto, só podem ser resgatados anos após a decisão judicial transitada em julgado. Com isso, criou-se um mercado paralelo no qual fundos de investimentos e empresas compram à vista precatórios de pessoas físicas ou jurídicas pagando um valor de face de 30% a 40% pelos papéis.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estima que o mercado de precatórios movimenta aproximadamente R$ 200 bilhões, o equivalente a 25% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. Por isso, a expectativa e apreensão após a portaria da AGU.
Imbróglio jurídico
O uso de precatórios para pagamento de outorgas foi aprovada por uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) promulgada em dezembro de 2021, durante o governo de Jair Bolsonaro.
A regulamentação do uso ampliado dos precatórios foi publicada apenas em dezembro do ano passado, pela AGU. A essa altura, a União já havia criado uma fila para quitação de R$ 100 bilhões por ano em precatórios. No entanto, uma pequena parcela (em torno de 20%) já foram pagos.
Motivos políticos e jurídicos estão por trás do atual impasse. Desde a posse, o governo Luiz Inácio Lula da Silva vinha sinalizando descontentamento em receber parte dos valores de outorgas em precatórios.
Embora, contabilmente, seu uso traria uma redução da dívida do governo, a preferência é por dinheiro, para reforçar o caixa – em especial após o anúncio do arcabouço fiscal, que exige aumento de receitas.
Em 9 de março, o ministro de Portos e Aeroportos, Márcio França, formalizou o veto do governo ao uso de precatórios para o pagamento de concessões. Dias depois, sob nova direção, a AGU revogou a portaria de dezembro, alegando a necessidade de uma revisão para garantir a segurança jurídica do procedimento.
Por meio de nova portaria, a AGU anunciou que uma norma para disciplinar o assunto será elaborada dentro de 120 dias por um grupo de trabalho interno. Até julho, portanto, pagamentos de outorgas por meio de precatórios ficarão suspensos.
Atualmente, outras três concessionárias de aeroportos, além da Aena, planejavam pagar R$ 2 bilhões de suas parcelas anuais de outorgas com precatórios. GRU Airport tem R$ 1,5 bilhão em pagamento pelo direito de exploração do aeroporto de Guarulhos (SP); a CCR Aeroportos, R$ 110,8 milhões por Confins (MG); e a Inframérica, R$ 279,5 milhões pelo aeroporto de Brasília (DF).
De acordo com Luisa D'Avola, especializada em Direito Constitucional do escritório PGD Sociedade de Advogadas, a revogação da AGU foi malvista. “A Aena, por exemplo, entrou no leilão e deu lance contando com a possibilidade de pagar a outorga com precatório e o direito foi retirado no meio do jogo”, disse.
Segundo ela, a portaria de dezembro da AGU de fato era capenga, sem especificar como seria estabelecida a liquidez desse precatório, quem iria fazer a auditoria de crédito e a porcentagem mínima e máxima permitida de pagamento da outorga, entre outras imprecisões.
"Ao anunciar a revogação da portaria anterior, a AGU sinalizou que vai montar outra e a expectativa é que não inviabilize isso”, diz D'Avola.
Por meio de nota, a Aena afirmou que, na fase atual, é cedo para especular sobre quaisquer ações a serem tomadas sobre os precatórios. “Tudo vai depender do posicionamento a ser emitido pela AGU, que pode ir de questões técnicas simples específicas sobre o que foi apresentado pela Aena até considerações mais complexas, uma vez que cada precatório tem características próprias”, informou a empresa.
A Aena, no entanto, manifestou “que está preparada para cumprir suas obrigações, inclusive substituindo meios já apresentados para pagamento, se necessário, e sem prejuízo ao resultado do leilão”.