A privatização da Corsan, antiga estatal gaúcha de saneamento que foi arrematada em leilão em dezembro por um consórcio liderado pela Aegea, a maior empresa privada do setor, corre novamente o risco de ser anulada.
A possibilidade, embora remota, voltou ao radar esta semana e chamou a atenção pelo fato de a ex-estatal não só ter contrato de venda oficializado, no valor de R$ 4,15 bilhões, e assinado pelo governador Eduardo Leite (PSDB), como por já ter nova diretoria empossada e investimentos de R$ 13 bilhões nos próximos 10 anos anunciados e iniciados pela Aegea, em parceria com duas empresas, Perfin e Kinea.
Na quarta-feira, 30 de agosto, o conselheiro Renato Azeredo, do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul (TCE-RS), anunciou seu voto autorizando a venda da Corsan.
Antes dele, a relatora Ana Moraes votou pela anulação da privatização, sendo acompanhada pelo conselheiro Estilac Xavier. Eles são os três integrantes da Primeira Câmara do TCE.
A relatora contesta alguns pontos do contrato, incluindo extensão da cobertura de esgoto e o preço estipulado pelo governo para a estatal ir a leilão, apontando diferenças entre o valor apresentado pelas projeções do estado e o demonstrado pela companhia - um caso de subprecificação.
Mesmo com o resultado de 2x1 contra a privatização, o resultado não foi proclamado. O presidente do colegiado atendeu a um pedido da relatora Ana Moraes, que pretende fazer novas ponderações sobre o seu voto. Ela está de férias e volta dia 12 de setembro.
A Procuradoria-Geral do Estado (PGE) terá de esperar até as ponderações da relatora para entrar com recurso. Só depois o julgamento definitivo da privatização será votado pelos sete integrantes do pleno do TCE.
Com isso, o caso Corsan ainda está longe do desfecho. E expõe, na prática, a insegurança jurídica que cerca o investimento privado em privatizações e concessões na área de infraestrutura.
Chicane jurídica
Primeira estatal de saneamento inteiramente privatizada desde a aprovação do marco legal do setor (Lei nº 14.026/2020), a Corsan atende 6 milhões de pessoas. A empresa oferece cobertura de 96,9% de acesso à água e de apenas 19,3% de tratamento de esgoto.
É a segunda vez que a privatização corre o risco de ser anulada, sendo as duas situações como desdobramento de uma disputa judicial envolvendo o TCE e o governo gaúcho.
A querela se arrasta desde dezembro de 2022, quando foi realizado o leilão, pelo qual o consórcio liderado pela Aegea pagou ágio de 1,15% sobre o preço mínimo estabelecido pelo edital.
Desde então, o governo gaúcho reverteu contestações à privatização da Corsan no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT-4) e, parcialmente, no Tribunal de Justiça (TJ-RS).
“A privatização da Corsan foi um caso complicado, cercada de mudanças no curso do processo de modelagem, o que gerou atrasos e questionamentos”, afirma Luiz Gustavo Kaercher Loureiro, sócio do escritório Souto Correa Advogados, especializado em infraestrutura.
Segundo ele, a proposta inicial era fazer uma abertura de capital (IPO). Mas o TCE se posicionou contra, o que levou o governo estadual a refazer o modelo, optando no fim pela venda total do controle da empresa.
“O Sindiáguas, sindicato dos funcionários da Corsan, foi muito aguerrido, partindo para contestações judiciais”, diz.
CPI na mira
Além do julgamento no TCE, a venda da Corsan também está sendo alvo de contestação no Congresso Nacional.
Esta semana, a deputada federal Denise Pessôa (PT-RS) e os deputados Alexandre Lindenmeyer (PT-RS) e Joseildo Ramos (PT-BA) protocolaram solicitação de audiência conjunta sobre a privatização da Corsan em três comissões da Câmara dos Deputados: Comissão de Administração e Serviço Público, Comissão de Trabalho e Comissão de Desenvolvimento Urbano.
O objetivo dos parlamentares é criar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para contestar a venda da Corsan, alegando irregularidades.
Loureiro, no entanto, acredita que a privatização deverá ser confirmada. “O processo, incluindo edital, foi auditado e passou pela aprovação do BNDES e até por áreas técnicas do TCE”, diz.
A expectativa é que o pleno do TCE deva sacramentar a venda, como o fez ao derrubar a medida cautelar, em julho.
Embora reconheça que disputas como a da Corsan levantem o velho debate da insegurança jurídica que cerca o investimento privado em concessões e privatizações, o especialista acredita que o caso da estatal privatizada não deve prejudicar o apetite de outras empresas que pretendem investir no setor de saneamento.
Segundo ele, o processo de privatização sempre gera confronto e, por isso, também prevê dificuldades no caso da privatização da Sabesp - que tem um modelo diferente, no qual o estado permanece com participação na companhia.
“Nos modelos de parceria público-privada (PPP), mais usuais com o novo governo federal, os processos tendem a ser menos dramáticos, com menos riscos para o capital privado”, afirma, citando o fato de os governos estaduais manterem o controle da empresa estatal, evitando disputas.
Já o uso de liminares para manter processos de privatização em curso, como foi o caso da Corsan, faz parte do jogo, diz Loureiro. Só em casos muito evidentes de irregularidades é possível imaginar uma reversão completa da venda de estatais.
“É possível que ainda existam ações contestando a privatização da Cedae, no Rio de Janeiro, por exemplo, mas ninguém contesta que a concessão de fato foi passada”, diz. “No caso da Corsan, dá para imaginar mais um ano de disputa.”
Em nota, a Aegea informou que "seguirá acompanhando o julgamento até a última instância do processo no TCE e reforça que a segurança jurídica continua sendo um dos principais fatores para a atração dos investimentos necessários para o evolução do saneamento no país."
(Reportagem atualizada às 17h40 de 1º de setembro de 2023 com nota da Aegea)