Menos de seis meses após a aprovação do Programa Combustível do Futuro, que instituiu o marco regulatório do setor de biocombustíveis, um elo importante dessa cadeia - do biodiesel - mergulhou numa crise que ameaça colocar em risco parte dos R$ 200 bilhões de investimentos previstos para os diversos segmentos do setor.
Os problemas tiveram origem com uma norma considerada positiva e sustentável aprovada pelo marco regulatório - a mistura obrigatória e escalonada de biodiesel ao óleo diesel nos postos de abastecimento -, que agora ameaça toda a cadeia do setor.
O cenário de grandes negócios envolvendo o segmento de biodiesel ficou turvo após uma sucessão de notícias negativas nos últimos 40 dias para os produtores, da profusão de fraudes na mistura do biodiesel ao óleo diesel nos postos de abastecimento, passando pela decisão unilateral do governo federal de interromper o cronograma de mistura.
Por conta disso, a crise cresceu em outras frentes. Numa delas, com uma divisão no setor quanto à estratégia de combater as fraudes. Em outra, por meio de uma articulação política no Congresso Nacional capitaneada pelo deputado federal Marcos Pollon (PL/MS), que apresentou um projeto de lei para permitir que postos de combustíveis comercializem gasolina e óleo diesel sem a adição de biocombustíveis.
Associações do setor de importação e distribuição de combustíveis elevaram ainda mais a tensão ao pressionar pela regulamentação da importação de biodiesel no Brasil, sob o argumento de que a ampliação da concorrência e redução dos preços do produto no mercado interno amenizariam o conflito.
Por trás da crise há um dado concreto: o salto de 41% do preço do biodiesel em 2024, muito acima do aumento de 2% no período do diesel puro. Essa diferença brutal estimulou as fraudes na mistura do biodiesel ao diesel nos postos de abastecimento e suas consequências.
A mistura é de 14% de biodiesel ao óleo diesel desde março de 2024. O percentual subiria para 15% em 1º de março, mas o governo suspendeu sua implementação a poucos dias de a norma entrar em vigor para não alimentar a inflação dos óleos vegetais – matéria-prima para o biodiesel –, e do próprio diesel.
A dificuldade de conter as fraudes nos postos de abastecimento, por sua vez, motivou o Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Combustíveis e de Lubrificantes (Sindicom) a romper uma aliança com produtores e entidades ligadas ao setor para pressionar o governo a apertar a fiscalização.
Em ofício enviado à Agência Nacional do Petróleo (ANP) há duas semanas, o Sindicom solicitou formalmente uma suspensão de 90 dias do calendário de mistura do biodiesel ao diesel, alegando irregularidades em 46% dos testes, com destaque para estados como São Paulo, Bahia e Minas Gerais, que são grandes consumidores. “Os ganhos ilegais com a fraude chegam a R$ 0,22 por litro”, diz a nota.
O governo está finalizando um decreto que dará mais poder para a ANP fiscalizar o mercado. Distribuidoras que não cumprirem com obrigações regulatórias, como a adição de biodiesel, deverão ter as atividades suspensas.
Poe enquanto, ações de fiscalização de ANP em todo o País fecharam cinco distribuidoras. Tanto o Sindicom quanto entidades do setor estão mobilizando mais recursos para apoiar a fiscalização da ANP.
Impacto
A rigor, todas as mobilizações são justificadas - do combate às fraudes, à maior liberdade de escolha e competitividade. O drama é o impacto na produção nacional do biocombustível.
“O biodiesel é a melhor opção para descarbonização dos motores diesel no curto prazo em comparação com todas as outras rotas tecnológicas para este fim, considerando que se utiliza da mesma infraestrutura e utilizada nos mesmos motores, sem necessidade de investimento de transição", afirma Erasmo Carlos Battistella, presidente da Be8, empresa gaúcha que teve receita de R$ 8,5 bilhões no ano passado, com grande participação no mercado de renovação energética.
Em janeiro, Battistella antecipou ao NeoFeed os detalhes do índice de eficiência do biodiesel, estudo criado pela empresa e apresentado no Fórum Econômico de Davos, na Suíça, que reforça a eficiência do biocombustível em relação ao óleo diesel. Pelo estudo, o custo do litro é 20% menor do que o do combustível fóssil.
"O biodiesel apresenta o melhor custo-benefício disparado", assegura Bartistella, que diz não ter alterado os planos de investimentos da Be8 com a crise. Ele defendeu a volta do aumento periódico da mistura do biodiesel ao óleo diesel.
"Acreditamos ser fundamental a retomada desse processo colocando a mistura em 15% já no próximo mês de abril, pois temos uma grande oferta de biodiesel mais barato como resultado da grande safra da soja disponível”, afirma ele.
Heloisa Verri Paulino Gomes, advogada especializada em direito ambiental e sócia do escritório Verri Paiva Advogadas, adverte que, se o pedido à ANP for acatado, todo o avanço já alcançado pelo setor será colocado novamente em xeque, além de ir contra as políticas sustentáveis do País.
“É imperioso que a fiscalização, acompanhada das punições necessárias dos fraudadores, seja efetiva”, diz Gomes. “O que não podemos aceitar é que a falta de recursos, humanos e materiais, a falha na fiscalização e a impunidade sejam ‘solucionadas’ com medidas de retrocesso em políticas modernas e sustentáveis, e que valorizam o potencial produtivo nacional.”
A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) calcula que 10 milhões de toneladas de soja deixarão de ser esmagadas com a suspensão do mandato de mistura. E adverte para outro efeito – aumento do preço da carne –, resultado da redução de 8 milhões de toneladas de farelo, subproduto do esmagamento e base da alimentação de animais de corte.
A crise ganhou escala em meio à divulgação de um relatório do Rabobank apontando que a elevação do teor de biodiesel representa uma oportunidade significativa para o setor.
O relatório, assinado por Marcela Marini, analista sênior de grãos e oleaginosas do Rabobank, dá destaque para as perspectivas do segmento de esmagamento de soja no Brasil, impulsionado pela maior demanda por óleo de soja — principal insumo do biodiesel, responsável por 72% da matéria-prima utilizada em 2024.
De acordo com o estudo, o setor de esmagamento vem numa rota de crescimento expressivo nos últimos anos. A capacidade de processamento passou de 48 milhões de toneladas em 2010 para 67 milhões em 2024, com taxa de utilização subindo de 74% para 81% no mesmo período.
Diversos fatores contribuíram para esse avanço: aumento da produção doméstica de soja, impactos da guerra na Ucrânia na oferta global de óleos vegetais e três anos consecutivos do fenômeno climático La Niña. Todos afetaram negativamente a produção de soja na Argentina, tradicional exportadora de derivados da oleaginosa.
Com isso, as margens de esmagamento dispararam. “O preço do óleo de soja em 2024 ficou 100% acima do registrado em 2019, enquanto a soja e o farelo subiram entre 65% e 70% no mesmo período”, aponta o relatório.
O estudo também destaca, além do papel ambiental, o peso social da cadeia do biodiesel. Isso porque as indústrias do setor são obrigadas a comprar parte da soja de pequenos produtores.
Em 2021, mais de 70 mil agricultores familiares foram beneficiados — 70% deles com menos de 40 hectares. “Mesmo em um país conhecido por grandes propriedades rurais, o biodiesel oferece suporte vital à agricultura familiar”, destaca o relatório.