É difícil imaginar algo mais revolucionário que a inteligência artificial (IA), usada de forma ubíqua. Mesmo uma pequena dose de inteligência incorporada a qualquer objeto eleva a eficácia do sistema a outro patamar. À medida que a incorporarmos no nosso dia a dia, ela será tão comum quanto um ERP nas empresas. O estudo da McKinsey “Notes from the AI Frontier: modeling the impact of AI on the world economy” nos dá uma clara visão do impacto da IA na economia mundial e, claro, nas empresas. IA não pode e nem deve ser subestimada.
Hoje ainda estamos muito longe de seu uso em larga escala. A IA está atualmente como a Internet estava há 20 anos, quando o Google estava sendo lançado e a Amazon era uma pequena livraria online. E o smartphone nem tinha sido sonhado! Apesar das promessas da IA, pouca coisa prática tem sido aplicada pelas empresas. Algumas pesquisas mostram que apenas de 8% a 10% das empresas estão adotando IA de forma ampla. A maioria das empresas tem desenvolvido apenas projetos pilotos ad hoc ou está aplicando IA em apenas um ou outro processo de negócios, de forma isolada.
Por que tão pouca aplicação? Antes de mais nada, para uma empresa pensar em fazer alguma coisa com IA ela deve ter uma clara compreensão do que é a tecnologia. O escritor britânico de ficção científica, Arthur C. Clarke, disse “Any sufficiently advanced technology is indistinguishable from magic”. Para muitos executivos IA ainda é mágica. Já ouvi coisas do tipo “ah, a IA vai resolver isso para nós!”, como se IA fosse aquela varinha de condão na mão do mágico, que “puft, resolve o problema”. Não, IA não é mágica.
A IA não é também uma solução plug-and-play que você instala e no dia seguinte consegue resultados. A organização (a começar pelos C-levels) tem que compreender o que é IA. E este entendimento de seu potencial e limitações deve ser disseminado por toda a empresa. Um exemplo que pode servir de benchmark é a iniciativa do Airbnb. IA, claro, não é a solução para todos os problemas.
IA é probabilístico e não pode ser aplicado a problemas determinísticos. Uma folha de pagamento é determinística. Seu salário é R$ 25.470,00 e você espera este exato valor sendo depositado na sua conta. Não aceitaria uma probabilidade de 95% de ser depositado este valor. Os 5% de erro podem afetar seu plano de vida no mês. Uma análise de radiologia, por outro lado, que indica com 97% de acerto um provável câncer de mama, é uma típica aplicação de IA, pois a própria medicina é probabilística. Um passo em direção à medicina preditiva é gigantesco, pois hoje a medicina é puramente diagnóstica, ou seja, diagnostica o que já está acontecendo. Não evita acontecer.
Além da compreensão, a empresa precisa ter competência e talentos. É absolutamente necessário ter pessoal que saiba identificar que problemas poderão ser resolvidos com IA, que tipos de dados (e se existem, onde estão e como poderão ser usados) serão necessários e que conjunto de algoritmos serão adotados. Usaremos algoritmos preditivos supervisionados? Ou não supervisionados? Ou será o caso de uso de algoritmos de reinforcement learning?
Embora nem sempre a solução demandará algoritmos sofisticados, um outro estudo da McKinsey, “Notes from the AI Frontier: insights from hundreds of use cases”, mostrou que técnicas avançadas de deep learning, como “feed forward neural networks”, “recurrent neural networks”, e “convolutional neural networks” representam pelo menos 40% do valor potencial considerando todas as técnicas analíticas.
Outras técnicas avançadas como “generative adversarial networks” (GANs) e “reinforcement learning” não foram avaliadas no estudo porque ainda estão bem incipientes, mas com certeza serão extremamente relevantes no futuro próximo. Portanto, ter pessoal que conheça estas técnicas ou que tenham potencial de vir a conhecê-las é essencial para as suas futuras aplicações de IA. Para ter este pessoal e conseguir resultados concretos, deve ter budget. Sem investimentos não se vai longe.
Os avanços na IA e robótica estão impulsionando uma nova era de automatização inteligente, que será um importante motor de desempenho empresarial nos próximos anos
E, claro, do lado do negócio, não adianta ter um grupo de “Machine Learning Engineers” (ML engineers) se não houver interlocutor que entenda dos desafios do negócio. Já ouvi um entristecedor depoimento de um ML engineer que me confessou que na primeira reunião em sua nova empresa, o executivo chegou para o recém-contratado grupo de IA e disse “vocês são o futuro da empresa. Vão para aquela sala legal ali, e desenvolvam soluções de IA, que sejam inovadoras e surpreendentes”. Se despediu e foi embora. Os profissionais de IA podem até gerar coisas surpreendentes, mas qual será aplicabilidade ao negócio? Se não houver uma forte interligação e engajamento mútuo entre os executivos e responsáveis pelos negócios e o pessoal de IA, teremos apenas um exercício de frustração.
Uma questão que ainda é pouco abordado nas iniciativas de IA: o treinamento adequado dos algoritmos e a eliminação de vieses, que podem distorcer resultados e gerar não apenas frustração, mas um problema de imagem e descrédito para a empresa. A grande maioria dos projetos da IA já se baseia nos algoritmos conhecidos como deep learning. Esses algoritmos podem impactar a vida das pessoas e, se aprenderem errado, podem perpetuar injustiças na contratação, na análise de crédito ou aprovação de um seguro saúde. Isso pode acontecer se a base e o processo de treinamento forem enviesados, distorcendo o processo de aprendizado do algoritmo.
Bem, voltando ao assunto de disseminação de IA nas empresas, já falamos em compreensão e competência. Falta uma terceira variável, a cultura, que permita e incentive experimentação e inovação. Que significa cultura de inovação? Iniciativas de IA não tem garantia de resultado. Então, imaginemos uma aplicação de IA que permita criar um serviço que vai afetar a “cash cow” atual do negócio. Sem um engajamento e suporte dos C-level, o resultado de curto prazo (manter a receita com o serviço ou produto atual) não dará espaço ao novo serviço. Um problema muito comum nas empresas não é ignorar o novo, mas manter os atuais produtos e serviços por tempo demais.
Outro cenário: a aplicação de IA otimiza de forma significativa as atuais operações, mas para isso demanda redesenho organizacional, mudanças de perfis nos profissionais e até mesmo demissões. Quem “banca” esta mudança? O grupo de engenheiros de machine Learning? Uma empresa ágil do século 21 pode ser autônoma ou quase autônoma, quebrando todos os paradigmas de modelos organizacionais que adotamos hoje, legado da era industrial. Recomendo enfaticamente a leitura do livro “Smart Business: what Alibaba´s sucess reveals about the future of strategy”, de Ming Zeng, chairman do Alibaba Group, para uma ideia do que seja realmente uma empresa do século 21. Lembro que criar uma iniciativa isolada de IA é até relativamente fácil, desde que as variáveis vistas anteriormente sejam atendidas. Mas a dificuldade está em permear IA pela organização. Um projeto, mesmo que bem-sucedido, terá pouco resultado na corporação como um todo.
Como tornar IA ubíqua na empresa? Em um artigo publicado na Harvard Business Review, “Building the AI-Powered Organization”, os analistas da Mckinsey apontam alguns caminhos que ajudam uma empresa a ter sucesso na sua jornada de IA. Vale a pena ler o texto com atenção. Destacam-se três variáveis críticas: trabalho colaborativo, com equipes multidisciplinares; adoção de cultura data-driven; e estrutura organizacional ágil e flexível. Um outro aspecto importante: transparência. IA muitas vezes se relaciona com substituição de humanos por máquinas e a empresa deve ter uma política clara e transparente em relação ao futuro, quando IA estiver sendo usada intensivamente.
Um outro aspecto importante e que deve ser analisado caso a caso é a organização de IA: como estruturar IA dentro da organização. O artigo da McKinsey fornece alguns subsídios e dele foi retirado a figura abaixo. Não existe receita de bolo. Cada empresa deve definir sua organização de acordo com sua maturidade no uso de IA, nível de sofisticação de suas aplicações e mesmo complexidade de seu modelo de negócios.
A conclusão é simples, mas dramática. Os avanços na IA e robótica estão impulsionando uma nova era de automatização inteligente, que será um importante motor de desempenho empresarial nos próximos anos. Vai afetar significativamente empresas, empregos, sociedade e a economia. Vai obrigar a revisão da atual formação educacional e demandar fortes ações por parte de governos e das empresas. É essencial que as corporações de todos os setores de negócio compreendam seu impacto potencial ou ficarão para trás. IA não é coisa de nerd ou de cientistas, mas deve estar nas reuniões do CEO e do board das organizações. Se isso ainda não está acontecendo na sua empresa, creio que você já tem um bom motivo para se preocupar!
*Cezar Taurion é Partner e Head of Digital Transformation da Kick Corporate Ventures e presidente do i2a2 (Instituto de Inteligência Artificial Aplicada). É autor de nove livros que abordam assuntos como Transformação Digital, Inovação, Big Data e Tecnologias Emergentes. Professor convidado da Fundação Dom Cabral. Antes, foi professor do MBA em Gestão Estratégica da TI pela FGV-RJ e da cadeira de Empreendedorismo na Internet pelo MBI da NCE/UFRJ.