As tecnologias digitais devem servir para viabilizar o bem-estar social e econômico. Portanto, é fundamental construir mecanismos de governança que evitem que seu uso amplie desigualdades, por meio dos pilares do ESG.

Um dos grandes desafios da corrida robótica, que soma a integração da Inteligência Artificial com estruturas de computação na nuvem (cloud), internet das coisas (IoT) e redes de 5G (e em breve 6G), é justamente garantir a soberania digital. Afinal, um apagão pode colocar em risco todo o ambiente, gerar um colapso em nível nacional ou até global.

Para evitar essas situações, os cuidados e prevenções devem se concentrar na forma de proteger os dados sensíveis, os investimentos em cibersegurança e o plano de continuidade para recuperação de desastres - que podem ser desde um apagão energético até uma ciberguerra.

Essas eram algumas das reivindicações presentes no Programa de Emergência para a soberania digital, entregue no ano passado ao então candidato Luiz Inácio Lula da Silva, durante sua campanha à presidência nacional.

Elaborado por pesquisadores, intelectuais e ativistas, a ideia com o documento era chamar atenção para a urgência de garantir maior controle, autonomia e segurança sobre os direitos digitais dos nossos cidadãos, desde a proteção de dados até as infraestruturas tecnológicas nacionais.

Claro que essa preocupação não é exclusiva do nosso território. Em 2019, um grupo de representantes de 28 países, do qual pude fazer parte como expert, se reuniu em Washington, capital dos Estados Unidos, para discutir como desenvolver uma Economia Digital confiável e segura.

Nesta agenda, tomou-se por base três pilares para a análise: 5G, cloud computing e Inteligência Artificial. Ou seja, quais os impactos da junção destes fatores e como os países deveriam desenvolver suas estratégias de soberania digital para o futuro.

A importância da temática cresce cada dia mais, tanto que a pauta já é um dos assuntos prioritários do G20. Não tem como tratarmos de bem-estar na era digital sem analisar os processos de ciência e tecnologia presentes em cada país, e a atual dependência que temos de poucas empresas que detém o controle dos serviços. Para se ter ideia, cerca de 70% da computação em nuvem mundial está concentrada no domínio de quatro empresas norte-americanas.

Pleitear a soberania digital tem a ver com entender os efeitos sociais, econômicos e ambientais dos recursos tecnológicos no nosso dia a dia, e como sua inserção nas nossas relações geram impactos em toda a população. Cada escolha nessa rede dos dados, da automatização e da inteligência artificial geram desdobramentos que dizem respeito não só da qualidade de vida presente, mas da gerações futuras.

A soberania digital tem a ver com entender os efeitos sociais, econômicos e ambientais dos recursos tecnológicos no nosso dia a dia

Por isso, é necessário uma abordagem regulatória eficiente para fortalecer a soberania digital, com procedimentos eficazes de cibersegurança. É imprescindível elaborar um plano estratégico de soberania digital considerando 3 pilares (5G, cloud e inteligência artificial) e o cenário dos próximos 5 anos (2024-2029), quando se espera uma grande crise em 2029 (100 anos da crise de 1929).

As projeções envolvem um apagão digital (energético, conectividade e disponibilidade, vulnerabilidades e ataques hackers, ciberameaças) e também uma nova crise sanitária (outra pandemia).

Penso que a maioria dos gestores e executivos ainda não se deu conta do quanto estamos próximos desta realidade e da gravidade diante o despreparo atual das Instituições. Um simples exemplo: você saberia dizer onde estão os dados quando você interage com uma IA Generativa (como o ChatGPT)? Quem pode acessar essas informações? Bem, a grande maioria não sabe responder.

No contexto em que vivemos atualmente, é possível literalmente tirar um país inteiro do ar, com efeitos políticos, sociais e econômicos devastadores. Esse tipo de ataque, que pode ser orquestrado por quadrilhas de cibercriminosos ou ciberterroristas, exige a realização de exercícios de simulação de sala de crise para verificar a capacidade de restabelecimento das estruturas críticas, medição de tempos de resposta e avaliação de impactos.

Isso mostra o quanto precisamos investir na construção da estratégia de Soberania Digital e conseguir mais visibilidade sobre todas essas situações de riscos e vulnerabilidades. Seja ao utilizar recursos na nuvem, quando nossos dados ficam armazenados em outros países, até a necessidade das empresas terem políticas de uso da IA generativa. São medidas para fomentar a ética e a transparência, numa construção mais sustentável no uso dos recursos digitais.

Isso define prioridades. Faz parte de uma autonomia estratégica de um país, a partir da regulamentação do tratamento dos dados, das infraestruturas digitais e dos serviços das corporações de tecnologia.

Dentro desta linha, vale destacar a importância da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) priorizar a regulamentação do artigo 46 da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), conforme previsto em seu § 1º, para detalhar os padrões técnicos mínimos de segurança de dados. Sem isso, todos os dias, enfrentamos licitações cujos editais têm dificuldade de exigir os requisitos seja da LGPD ou de Soberania Digital, principalmente os relacionados à proteção e à segurança de dados.

Não há mais tempo a perder. O Brasil e o povo brasileiro não podem ficar expostos a toda sorte de vazamentos e sequestro de dados, tampouco refém do exercício de posição dominante de mercado por concentração excessiva deste ou daquele fornecedor de tecnologia. Precisamos do Brasil Soberano, e a soberania se passa pela Soberania Digital.

Patricia Peck é CEO e sócia fundadora do Peck Advogados, conselheira titular do Conselho Nacional de Proteção de Dados (CNPD) e professora de direito digital da ESPM.