A tokenização de ativos representa uma das mais disruptivas inovações do Direito Digital e do mercado financeiro contemporâneo. Impulsionada pela tecnologia blockchain, essa prática permite transformar ativos — como imóveis ou direitos reais — em unidades digitais de valor chamadas tokens. No entanto, quando aplicada ao mercado imobiliário brasileiro, essa inovação exige um cuidado redobrado: trata-se de um setor altamente regulado, com implicações sociais, econômicas e jurídicas profundas.

Por certo, tokenização é inovação. Mas inovação não pode estar atrelada a práticas que comprometam a confiança em um mercado tão consolidado quanto o imobiliário. Como bem resume o professor Dr. Sérgio Jacomino, é preciso evitar o “fetiche com a tecnologia” — a ilusão de que toda novidade digital é, por si só, um avanço. Nem toda tecnologia é evolução.

O carimbo, por exemplo, foi uma inovação em seu tempo, pois conferia autenticidade e segurança documental. O mesmo princípio deve nortear a adoção de novas tecnologias: garantir clareza, segurança jurídica e proteção ao cidadão.
No caso dos tokens, princípios como imutabilidade, visibilidade, acessibilidade e transparência são fundamentais. Mas, no Brasil, a propriedade imobiliária não se constitui por meio de blockchain, e sim pelo registro na matrícula do imóvel.

Qualquer tentativa de criar sistemas paralelos, descentralizados e não oficiais — como os propostos por algumas plataformas — gera confusão, e não clareza. E, pior, pode configurar crime contra o consumidor, ao induzir o adquirente a acreditar que possui um direito real que, juridicamente, não existe.

Neste sentido, em agosto de 2025, o Conselho Federal de Corretores de Imóveis (COFECI) publicou a Resolução nº 1.551/25, buscando regulamentar as transações imobiliárias digitais e instituir um sistema próprio de tokenização. A iniciativa, embora bem-intencionada, extrapolou os limites legais. O COFECI, como autarquia de fiscalização profissional, não possui competência para legislar sobre registros públicos ou valores mobiliários — temas que são, respectivamente, de competência dos cartórios, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

A Resolução foi contestada judicialmente pelo Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (ONR), que apontou diversas irregularidades, como a ausência de medidas de prevenção à lavagem de dinheiro e a possibilidade de cadastro com qualquer nome e CPF, sem vínculo verificável. O modelo proposto, ao permitir o fracionamento de imóveis sem respaldo registral, abre brechas para ocultação de patrimônio e evasão fiscal — práticas que contrariam a Estratégia Nacional de Combate à Lavagem de Dinheiro (ENCLA).

O Judiciário, atento a esses riscos, suspendeu os efeitos da Resolução, reconhecendo a incompetência do COFECI para tratar do tema. A decisão reforça que inovação imobiliária exige tempo de maturação e deve ocorrer com protagonismo do registro de imóveis, que já oferece um sistema estruturado, confiável e com ampla capilaridade nacional, demonstrando que deve prevalecer o imperativo da segurança jurídica.

Portanto, a tokenização de ativos, especialmente no setor imobiliário, precisa reunir três dimensões: a imobiliária, a registral e a digital. Não se trata apenas de uma relação bilateral entre comprador e vendedor, mas de uma relação multilateral que envolve o Estado, o Judiciário, o sistema financeiro e a sociedade. O imóvel tem reflexo social: está vinculado a políticas públicas municipais, penhoras, indisponibilidades e garantias de crédito. Ele garante direitos e impõe deveres. Por isso, qualquer inovação deve preservar a unicidade da matrícula, a rastreabilidade das transações e a oponibilidade dos direitos.

A proposta de tokenizar imóveis sem o devido registro oficial não apenas viola o Código Civil e a Lei dos Registros Públicos, como também ameaça a segurança jurídica de todo o ecossistema. A transparência e a visibilidade — tão exaltadas na tecnologia blockchain — só terão valor se forem integradas ao sistema registral brasileiro, e não se sobrepuserem a ele. Logo, o que temos visto sendo oferecido no Brasil até agora são meramente modelos baseados em uma promessa, que está acompanhada de elevados riscos associados a desregulação.

A tokenização pode, sim, ser uma alavanca para democratizar o investimento imobiliário, permitir maior liquidez e atrair capital. Mas, para isso, precisa estar ancorada em bases jurídicas sólidas. O desafio não é tecnológico — é institucional. E a resposta está na construção de um modelo que respeite o ordenamento jurídico, combata práticas ilícitas e preserve a confiança no sistema.

O Brasil tem todo o potencial para liderar a tokenização imobiliária de forma segura e eficiente. Mas isso exige uma regulação clara, construída com a participação de todos os atores do setor: cartórios, CVM, ONR, Judiciário, mercado e sociedade civil. A inovação deve ser regulada, e não improvisada. Deve ampliar o acesso, e não gerar insegurança. Deve facilitar, e não confundir. Tudo isso contribui para trilhar um caminho para uma inovação responsável e sustentável.

Qualquer iniciativa contrária a isso traz grande prejuízo para o Brasil e o povo brasileiro. Afinal, inovação sem segurança é apenas malabarismo jurídico.

Patricia Peck é PhD. Advogada, graduada e doutora pela USP, especialista em Direito Digital com 25 anos de atuação. Membro titular do Comitê Nacional de Cibersegurança (CNCiber) e da Comissão de Proteção de Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). CEO e sócia fundadora do Peck Advogados. Presidente do Instituto Peck de Cidadania Digital (IPCD), Head de Políticas Públicas do Instituto Norberto Bobbio (INB), Professora convidada da ESPM, autora de 55 obras sobre Direito e Tecnologia.