Esqueça aquelas marcas tradicionais de uísque nacional de qualidade questionável. Está surgindo no Brasil uma nova geração de single malts, bourbons e blendeds elogiados por especialistas e premiados internacionalmente.
Ainda é um mercado incipiente, sobretudo se comparado com países produtores mais tradicionais e consolidados, como a Escócia, claro, os Estados Unidos e o Japão. Cada vez mais, porém, os produtores brasileiros têm se dedicado a preparar uma bebida premium, em que o foco está na experiência sensorial do consumidor.
Essa turma está mais preocupada com os diversos detalhes do processo do que com a quantidade. Tudo é considerado: as características do destilador, a origem dos maltes de cereais, a maturação nos barris, a finalização e o engarrafamento. O desejo comum é o de criar uma cultura genuinamente brasileira de uísque.
A produção, por enquanto, é pequena, focada em entusiastas e em quem gosta de provar novidades. A maior parte é vendida em sites próprios, com entrega em todo o País, e em bares e restaurantes.
“O que mudou o mercado brasileiro nos últimos dez anos anos é algo inacreditável. Estamos descobrindo um jeito brasileiro de fazer uísque", diz Maurício Porto, proprietário do bar especializado Caledonia Whisky & Co, em conversa com o NeoFeeed.
“O Brasil vai chegar lá, embora eu não tenha a resposta do que vai ser”, completa ele, também autor do blog Cão Engarrafado, onde registra desde 2015 suas impressões sobre as novidades de tudo que envolve esse patrimônio etílico escocês.
Um dos integrantes mais ativos desse grupo é a destilaria Lamas, localizada em Matozinhos, em Minas Gerais. O negócio começou de forma improvisada como um projeto para a aposentadoria dos irmãos Márcio, Marcelo e José Carlos Lamas. Eles viajaram para a Escócia e Estados Unidos para conhecer destilarias e aprender as técnicas, para, em 2019, lançar oficialmente a destilaria.
A Lamas tem atualmente em seu portfólio dez rótulos em sua linha fixa, além de lançar recorrentemente edições especiais. As garrafas de 720 mililitros custam de 230 a 320 reais.
O mais festejado deles é o single malt Nimbus Robustus, que tem seis medalhas em premiações internacionais e — a maior das glórias — recebeu nota 95,5, de 100, do crítico britânico Jim Murray, autor do Whisky Bible, referência de degustação da uisge beatha (água da vida, no escocês gaélico). Uma nota altíssima.
O especialista não economizou elogios à bebida mineira, que é defumada e tem o teor alcoólico de 54%, o máximo permitido pela legislação brasileira.
Escreveu, em tradução livre: “O nariz é magnífico. Pela primeira vez, eu poderia facilmente confundir este uísque com um escocês defumado das Terras Altas. ([...]) Muito salgado também, algo que você não esperaria do Brasil, com um toque ácido para manter os sentidos afiados e ativos. ([...]) Se você acha que o aroma é bom — e você vai achar — experimente este sabor!"
A Lamas também investe em versões inovadoras. Um exemplo é o uísque com a maturação finalizada em madeiras brasileiras, como o angico, o sassafrás, o bálsamo e a amburana.
“Nossa marca tem muito orgulho de ser brasileira e mineira”, diz ao NeoFeed Luciana Lamas, filha de um dos fundadores e que hoje está à frente da operação.
Outras ousadias da marca são o Brasilides, que é turfado [produto da queima da turfa, uma matéria vegetal, como musgos, plantas e fungos, que intensifica o sabor], e o Sky Kush, uma variedade que mistura o single malt com terpeno canábico.
O sucesso comercial da Lamas pode ser medido pelo investimento de R$ 50 milhões para a construção de uma nova destilaria com capacidade de produção três vezes maior e com espaço para visitação, em Pedro Leopoldo, a menos de 10 quilômetros da sede original. E também pela demanda de clientes internacionais.
“Já exportamos para Rússia, Holanda, França e Coreia do Sul”, diz Luciana. “Tudo está acontecendo de forma extremamente orgânica.”
Em busca do seu DNA
A Union Distillery, de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, por sua vez, surgiu como uma vinícola em 1948 e se transformou em destilaria de uísque, como o formato societário atual, em 1975.
Desde o início, sua principal atividade é fornecer malte de uísque para outras engarrafadoras do País, com uma produção anual de 1,7 milhão de litros de destilados.
Em 2019, a destilaria aproveitou a tecnologia instalada e a experiência acumulada para criar uma marca própria e abrir uma área de visitação.
A matéria-prima é justamente parte de sua produção ao longo dos anos que foi armazenada em barris de carvalho para envelhecimento.
“A ideia é produzir o uísque com o nosso DNA, considerando o clima, local de armazenamento e outras características”, diz Luciano Borsato, seu diretor-executivo, ao NeoFeed.
O mais recente lançamento da companhia é o Pure Malt Whisky Vintage 2005 Double Wood. Trata-se de um destilado de 2005, que permaneceu 17 anos armazenado em barris de carvalho americano, utilizado anteriormente para guardar bourbon, e outros três em carvalho francês, com uma graduação alcoólica de 50%.
Cada uma das 2005 garrafas numeradas sai por nada menos que R$ 895. “É o uísque mais envelhecido produzido na América Latina”, diz Borsato.
Mistura premiada
Aberta em 2012, a Kalvelage Distillery, sediada em Blumenau, em Santa Catarina, adotou uma estratégia distinta. Em vez de single malts, a companhia optou por investir em um blended whisky, uma mistura de bebidas, com diferentes tipos de malte e barris para maturação.
Pela legislação brasileira, esse tipo de uísque precisa ter, no mínimo, 30% de malt whisky envelhecido por, ao menos, dois anos. “O objetivo é manter a consistência ao longo do tempo, sem alterações significativas de sabor e aroma”, diz Maurício Kalvelage, um dos sócios, ao NeoFeed.
O Blended Whisky Kalvelage, apresentado em 2022, também obteve reconhecimento internacional. O destilado recebeu em 2023 o prêmio máximo nas três principais competições de degustação às cegas realizadas pela The Tasting Alliance em Nova York, Singapura e San Francisco, sendo agraciado com o Triple Stille Award.
“O próximo passo é lançar um blended mais complexo e, mais para frente, ter também um single malt”, afirma Maurício.
Caçador de tesouros etílicos
Esse mercado incipiente fez surgir aqui um outro modelo de negócio: a engarrafadora independente de uísque Lunatic Asylum, de Monte Belo do Sul, na Serra Gaúcha. Seus sócios, Rafael Nardi e Pedro Paiva, atuam como caçadores de tesouros etílicos. Eles visitam as destilarias em busca de barris de uísque que consideram de alta qualidade para comprar e, então, dar seu toque final.
O mais recente lançamento foi chamado de Only Ash Remains — não estranhe, pois todos os uísques da marca têm uma música de heavy metal no nome. Sua base é um uísque turfado com maturação de seis anos em barris de carvalho americano, comprado da Union Distillery, que foi transferido para um recipiente de vinho pinot noir esvaziado no mesmo dia.
“Isso permitiu trazer notas de frutas vermelhas do vinho, sem nenhum tipo de contaminação”, explica Rafael.
Até o momento, a Lunatic Asylum investiu em três barris. Cada um deles rendeu entre 250 e 300 garrafas. Todas foram vendidas apenas no boca a boca, sem investimento em marketing.
O mercado continua recebendo novos produtores. O empresário Leo Kalash construiu há um ano uma destilaria em Belmiro Braga, no interior mineiro, para iniciar sua própria produção.
O maquinário faz parte da Paraizo Destilaria e Vinícola. As primeiras destilações de uísque já foram feitas e estão envelhecendo em barris de carvalho americano. A intenção é lançar as primeiras edições daqui a 2 ou 3 anos. “Mesmo antes de ter o uísque pronto, eu já vendi seis barris, com a promessa de entregar 200 garrafas de cada um”, conta ele ao NeoFeed.
Uísque tropical
Um grande desafio desse mercado é dobrar a desconfiança do consumidor de beber um uísque brasileiro. Muita gente torce o nariz só por ser nacional, antes mesmo de provar. “Temos de mostrar que, sim, é possível produzir uísque no país tropical, com identidade própria, com suas características”, afirma Borsato, da Union Distillery.
Um exemplo, conta, é a surpresa dos visitantes da destilaria ao ver de perto os ingredientes, os barris e todo o cuidado para fazer uísque e a forma de consumir essa bebida. “É preciso fazer um trabalho de desmitificação, de tornar mais conhecido esse uísque brasileiro de melhor qualidade”, afirma.
Quem quiser experimentar os primeiros frutos dessa nova cara do uísque brasileiro vai encontrar uma bebida superior, por exemplo, a um oito anos padrão escocês. “Sensorialmente falando, esses uísques brasileiros são muito melhores”, avalia Maurício, do Caledonia Whisky & Co.
“As grandes marcas internacionais foram criadas para agradar o maior número de pessoas possível”, diz. “Essa geração nova, por sua vez, é focada em quem quer realmente beber algo diferente.” É o começo de um novo jeito de fazer uísque no Brasil.